Dr. Flávio de Andrade Goulart*
Oeiras é uma cidade do Piauí, um pouco mais do que pequena (cerca de 36 mil habitantes), bem no meio do estado, longe do mar, do Brasil dito “desenvolvido” e mesmo da capital Teresina (280 km). Tem antiguidade e cultura própria, mas quanto ao mais tinha tudo para ser mais um remoto e abandonado pedaço do vasto Brasil, como tantos outros, aliás, e como tal vítima de desprezo e preconceito. Mas na Educação a cidade brilha! Tem sido assim desde 2013, quando a Secretaria Municipal de Educação passou às mãos de uma gestão competente, de educadores verdadeiros, chefiados por uma figura iluminada chamada Tiana Tapety, que vem fazendo crescer os indicadores educacionais no município, bem retratados pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) no qual Oeiras superou a meta proposta para 2021, atingindo a nota 7,4 em 2019, versus reles três (!) pontos 15 anos antes. A expectativa atual para o Brasil não passaria de 6,0 em tal quesito e isso já colocaria a cidade em condições de ser comparada com alguns países desenvolvidos. A equipe de Tapety não deixa por menos, seu objetivo é de que a cidade seja reconhecida pela excelência da educação e mesmo vir a se tornar uma “exportadora de cérebros e de mudança de paradigma na educação”. E orgulhosamente ela acrescenta: “Agora as escolas particulares ligam para oferecer ajuda aos meninos, como se eles já tivessem vindo prontos”, embora ainda não saiba como lidar com o assédio sobre os estudantes que já ganharam 18 premiações na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas. Qual o segredo de Oeiras, afinal? Será que nas outras políticas públicas, na saúde, por exemplo, tal feito se repete?
O que estaria na base de uma melhora tão expressiva na educação de uma cidade assim, tão pobre e remota, em tão pouco tempo? A Unesco se interessou em obter a resposta para isso, mandou uma equipe sua em campo e já divulga um vasto relatório sobe o que viu lá (ver link ao final), no qual se afirma: Esta experiência de gestão municipal, com um grau elevado de complexidade e diversidade de alternativas construídas, sinaliza caminhos e reflexões importantes na busca da efetivação do direito à educação de qualidade, com igualdade e inclusão, em um contexto com enormes demandas e desafios. De fato, há diferenciais importantes em Oeiras.
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Em primeiro lugar, as escolas da rede municipal não têm tanta discrepância entre si, algo raro de ser encontrado no Brasil. O relatório da Unesco indica que tais resultados tão uniformes são resultado de uma conjunção de fatores: apoio político e institucional, continuidade de gestão, realização de diagnóstico inicial, planejamento e redesenho da estrutura da rede e recursos.
A pandemia afetou o desenvolvimento da educação em Oeiras, como na maioria dos lugares do Brasil e do Mundo. A gestão local, todavia, encarou tal desafio, ao propor aprofundar e expandir os instrumentos de gestão democrática e participativa, e trazer para dentro da rede os professores temporários, que hoje representam um terço da força de trabalho.
A questão do financiamento também é um gargalo importante e mesmo apesar disso se impôs o atendimento prioritário aos segmentos mais vulneráveis da população, tais como pessoas de baixa renda, comunidades rurais, crianças e adolescentes com deficiência ainda fora da escola, adultos analfabetos e com baixa escolaridade.
A equipe local levou a sério as mensagens da Unesco, propondo um objetivo ambicioso para o retorno presencial às aulas: não deixar nenhum aluno para trás. E para tanto, recuperar a aprendizagem de todos, priorizando as habilidades essenciais ―tanto as cognitivas quanto as socioemocionais, no que se inclui o desenvolvimento da empatia e da paciência. Ao mesmo tempo em que se investiu na volta e incentivo aos núcleos de cultura, abrindo as escolas para acolhimento aos alunos através da arte.
Trata-se de uma retomada “diferente de tudo o que já se fez na educação no Brasil”, diz a Secretária, destacando a importância de uma política sólida e enraizada na cidade, de decididamente não precisou “começar do nada”. Ali o período de crise não foi perdido, pois não se parou na pandemia, apesar da interrupção das aulas, aproveitando-se o tempo para investir em planejamento capacitação de professores.
A rede municipal investiu também na provisão de tecnologias de ensino-aprendizagem, bem como em uma política inovadora de escalonamento, com 200 horas letivas presenciais e 600 horas não-presenciais, por meio dos chamados “cadernos de atividade”, distribuídos democraticamente aos alunos.
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Criou-se também um esquema de programas de rádio, de segunda a sábado, além de podcasts distribuídos via celular para os estudantes, inclusive com a aquisição de um estúdio próprio. E Tapety já sonha grande: “quatro horas na rádio não é suficiente, precisamos de uma rádio inteira só para educação”.
Oeiras também investiu na aquisição de tablets para dar um upgrade nos diários de classe de papel, que passaram para o online. Como de costume na realidade do Brasil, entretanto, a maioria dos estudantes não tem acesso de qualidade à internet, com pouca capacidade de baixar a plataforma de ensino, o mesmo acontecendo com os professores que residem na zona rural.
O Presidente da República, dentro de seu costumeiro desprezo pela educação, vetou em março deste ano integralmente o projeto de lei da Câmara dos Deputados que previa ajuda financeira de 3,5 bilhões da União para Estados e municípios garantirem acesso à internet para alunos e professores das redes públicas de ensino. Mesmo assim, alguns trocados chegaram lá para investimento em tecnologia e foram bem aproveitados. Em Oeiras, com tais recursos, embora não tenha sido foi possível colocar todos os alunos na rede, foi garantida a conexão para todas as escolas. Mas de toda forma a equipe local já encara o desafio futuro de prever orçamento para aparelhar adequadamente tanto professores como alunos.
Detalhe adicional é que Oeiras contratou duas educadoras de Teresina para fazer uma intervenção de alfabetização, batizada de Projeto Borboleta, consistindo no desenvolvimento de uma série de sequências didáticas alternativas, que tem como foco a evolução das habilidades de leitura e interpretação a ser aplicado em todas as disciplinas.
Enquanto isso, a incansável Tiana Tapety já planeja a primeira avaliação diagnóstica presencial, a ocorrer entre agosto e setembro correntes, para checar a aprendizagem dos alunos no período de ensino a distância, para ver se realmente recuperaram o tempo perdido.
Mas este blog tem a Saúde como tema e até agora só falei de Educação. Vamos àquela.
Em primeiro lugar, a pergunta formulada acima: será que outras áreas de política pública estão sendo também aquinhoadas em Oeiras? Há ali realmente um “bom governo”?
A categoria do “bom governo” tem sido muito explorada na literatura sobre administração pública e diversos autores tem se debruçado sobre ela. Tendler (1998), por exemplo, analisando experiências no estado do Ceará, aponta como fatores positivos os incentivos à dedicação dos trabalhadores da saúde, o desenvolvimento de certas noções de vocação e missão, além de “pressões para o comportamento responsável”. Hirschman (1984), fala na mobilização dos chamados recursos morais mobilizados pelas administrações, as “acumulações simbólicas”, traduzidas pela confiança mútua entre governo e cidadãos. Putnan (1996) aponta os fatores da estabilidade social e institucional, da qualidade da educação, da urbanização, e das características do partido no poder.
O fato é que bons governos não costumam se circunscrever a apenas uma área ou segmento da administração pública, mas a todo o conjunto das ações, mesmo guardadas algumas diferenças entre seus elementos. O estudo de Tendler descreve um saudável processo de entrelaçamento e dinâmicas, de natureza bilateral, entre o governo local e a sociedade civil, gerando pressões para o incremento da prestação de contas, com mais responsabilidade e transparência do setor público. Forma-se, assim, um “sistema causal bidirecional” envolvendo governo e comunidade, ou até mesmo tri-direcional, como no caso estudado no Brasil, por envolver também não apenas os governos locais, mas também o estadual . Mas sem dúvida o governo local é mais eficaz para determinados tipos de ação, por sua maior proximidade com a realidade local e por sua maior vulnerabilidade às pressões dos clientes-cidadãos. E além disso, sem dúvida, uma sociedade civil robusta representa sem dúvida um forte pré-requisito para um “bom governo”, sem impedimento de que outras dimensões estejam presentes.
Assim é que um bom governo conta com a liderança com forte atributo, o que envolve também carisma, voluntarismo, “personalidade”. Sobre o papel exercido pelo líder, como é o caso de Tapety, há que ressaltar a compreensão das equipes a respeito de seu talento e também de sua visão de futuro, embora as boas experiências de gestão não devam ser interpretadas apenas como resultado direto e unívoco do surgimento idiossincrático de lideranças, mas também como o resultado de circunstâncias muito mais abrangentes.
Não tenho informações sobre o andamento da política local de saúde em Oeiras, mas é possível antecipar que, no mínimo, ali deve haver responsabilização e cumprimento dos requisitos filosóficos e normativos do SUS. Mas uma coisa é certa: a maneira como conduzem as questões da educação no município está repleta de exemplos aplicáveis ao campo da saúde, como também a outras áreas da administração pública. Se não, vejamos.
Liderança, como aquela exercida pela secretária Tiana Tapety é fundamental, mas de nada valeria se não fosse acompanhada por equipes técnicas que não só acreditam na liderança dela como certamente têm preparo para discutir o tema da Educação dentro de uma perspectiva progressista e bem fundamentada. Não é preciso insistir que isso na saúde também tem enorme impacto e a realidade das experiências que conheci e conheço reforça isso de maneira inquestionável.
É claro que como pano de fundo existe uma decisão política firme, capaz de arregimentar gente competente e que também respeita as decisões de tal equipe técnica. Bem ao contrário do que acontece no governo federal atual, aliás.
Aspecto derivado disso é permanência de uma mesma equipe por tempo prolongado, no caso de Oeiras por quase uma década. Parece óbvio, mas infelizmente é regra pouco observada no Brasil. Implica também que o trabalho executado seja competente, pois de nada adiantaria e só seria prejudicial a permanência por longo prazo de gente inepta ou pouco motivada.
Amparo em conhecimento científico já consagrado e testado em outros lugares certamente é o que se vê em Oeiras, sem impedimento de que tenham acrescentado inovações em suas práticas, como é o caso do escalonamento de retorno às aulas. Da mesma forma, devem ter prestado atenção ao que acontece alhures, o que pode parecer um tanto óbvio, embora não costume ser exatamente uma regra nacional, tanto na educação como na saúde.
E tem mais, face à presente pandemia que exterminou projetos e expectativas por toda parte, em Oeiras se encarou o desafio de não só dar continuidade ao que já vinha sendo feito, como também de associar a isso o aprofundamento e a expansão das atividades de planejamento e dos instrumentos de gestão democrática e participativa.
Aliás, por que a Unesco ou El País, além de outros órgãos sociais e de imprensa se interessaram pelo caso de Oeiras? Por uma razão muito simples certamente: porque ouviram falar do que se passava ali. Isso indica um outro fator de acerto da experiência de lá: a turma de Oeiras foi capaz de fazer seu trabalho conhecido além de suas fronteiras. E certamente teve também a curiosidade de sair para conhecer o que se passava fora dali. Esta forma de cosmopolitismo deve ser distinguida de alguma compulsão turística e representa também um fator de sucesso, traduzindo uma atitude generosidade e compartilhamento de uma experiência, mas também de modéstia e respeito em relação ao que se faz fora da Aldeia, com a capacidade de adaptação ao contexto local.
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PS. Por curiosidade, resolvi conferir a votação que teve em Oeiras, no segundo turno, o déspota mal esclarecido que atualmente ocupa o posto de Presidente da República no Brasil. Pois bem: pouco passou dos 16%… Conclusões? Sei não; tirem-nas vocês. Mas tudo indica que aquele componente societal do bom governo é levado a sério e se tornou influente por lá.
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.