Ana Maria Coelho Carvalho*
Recebi uma encantadora foto por WhatsApp. Nela, cerca de 30 crianças indianas, com pele escura, cabelos pretos e lisos e roupas coloridas, fazem um círculo em volta de uma garotinha de uns dois anos, muito branca, loira e de olhos azuis. Estão rindo, com olhares curiosos, algumas tampando a boca de tanto rir, outras agachadas para darem lugar às crianças que estão atrás. Todas estão encantadas com aquela menina tão branca, de cabelos cacheados e que não entende nada do que está acontecendo. Junto com a foto, a frase: “o estranhamento diante da diferença não precisa ser vivido na forma de racismo; é possível vivê-lo com encantamento”.
Vendo a foto, não pude deixar de pensar na minha netinha Yara, quando tinha quase dois anos. Ela se parecia com a garotinha da foto e estava na Índia. Ficou em Rishikesh, a capital da yoga, no Himalaya, por dois meses e meio, com a mãe, o irmão e o pai. Os indianos ficaram maravilhados com sua brancura e com os cabelos loiros. O pai, Djalma, meu genro, também ficou famoso. A pele dele é escura, como a dos indianos, mas os cabelos são do tipo dreadlocks, arranjados em longas tranças. Todos queriam passar as mãos e tirar fotos com ele e com a Yara. É mesmo uma forma de encantamento pelas diferenças.
Já escrevi sobre esse meu genro. Ele vivia em um quilombola na Bahia, junto com os pais e dez irmãos, trabalhando na extração de borracha. Vida dura, sem energia elétrica e sem água encanada. Quando foi descoberto pela minha filha, nunca tinha viajado, ido a um shopping, tomado um cerveja. Depois entrou com a família em um Boeing 747 e foi para Madri. Direto do calor da Bahia para os dois dias mais frios dos últimos anos na Europa, acrescentado de uma nevasca terrível na escala em Londres. De lá, desceram em Nova Deli. Imagino o Djalma, saindo da natureza sossegada para cair no turbilhão de pessoas, vacas, porcos, bicicletas, carros e toda aquela loucura que é a Índia. E sem entender o que falavam. Aliás, ele não sabe nem ler (a minha filha tentou ensinar, mas não deu certo). Faz parte dos cerca de 11 milhões de brasileiros analfabetos. Até frequentou algum tempo a escolinha do quilombola. Trabalhava o dia todo e percorria vários quilômetros na floresta para ir assistir aulas que não ensinavam nada. Os sobrinhos também tentaram aprender a ler e escrever durante muitos anos, assim como sua irmã, carinhosamente chamada de Tim. Calada, sempre sorrindo, cabelos escovados e enfeitados, braços troncudinhos de tanto carregar água no balde (ela tem mais de 30 anos mas parece uma menininha, pois não cresceu). Durante muito tempo, foi de canoa estudar em Maraú para aprender quase nada. Na sétima série, depois de repetir várias séries, desistiu de estudar (iguais ao caso dela, conheço muitos).
E então, por acaso, li um artigo de Roberto Pompeu, na revista Veja, intitulado Homo connectus. Ele descreve essa nova espécie, formada por pessoas que carregam o smartphone pra todo canto e que partilham a vida com ele. Que olham para seus iPhones muito mais do que umas para as outras, receando perder uma notícia importante, uma mensagem, deixar de fazer uma consulta no Google, de dar uma olhada ou postar no Facebook, no Instagram, no WhatsApp. Por isso, cada pessoa fica partida ao meio: metade dela se comunica com as pessoas em volta, metade afaga o smartphone com os dedos. Um olho na pessoa, outro olho na telinha, em uma conexão total com o mundo inteiro.
Realmente, parte da humanidade já passou (evoluiu ou regrediu?) de Homo sapiens para Homo connectus. Mas o contraste é enorme entre as pessoas do mundo virtual e conectado e as pessoas que não sabem nem ler.
*Bióloga – Uberlândia – MG – anacoelhocarvalho@terra.com.br