Dr. Flávio de Andrade Goulart*
Assim como tem gente que acredita em cloroquina, ameaça comunista, voto impresso ou nas boas intenções do atual governo, há aqueles que ainda questionam a eficácia da Atenção Primária Básica no incremento à resolutividade e à qualidade dos sistemas de saúde. Não fosse assim certamente já teríamos a nossa estratégia de Saúde da Família não só mais prestigiada como também difundida ao longo de todo o território nacional. Mas apesar de tudo isso o The Lancet, uma das mais prestigiadas revistas médicas de todo o mundo, acaba de publicar um artigo taxativo, The quality of alternative models of primary health care and morbidity and mortality in Brazil: a national longitudinal analysis (ver link ao final), no qual pesquisadores gabaritados do Brasil e da Inglaterra trazem dados e informações confiáveis sobre tal assunto. A conclusão geral é de que ocorreu melhoria da qualidade da estratégia de APS no Brasil nas últimas décadas, associada a reduções nas hospitalizações e na mortalidade de algumas condições. São achados que acrescentam evidências sobre a importância da APS na melhoria da saúde da população e também para alavancar o desenvolvimento sustentável relacionado à saúde. Mas atenção: o grande diferencial é o da qualidade da atenção. Não se trata de “qualquer” APS, daquele tipo, por exemplo, que certas autoridades políticas adoram tirar proveito eleitoral. É preciso ir mais além…
Para início de conversa, vamos definir o que vem a ser uma APS/Atenção Básica que realmente mereça tal nome. A verdadeira natureza dela deve conter, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) ações de saúde, no âmbito individual e coletivo; (2) abrangência que inclua a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, além da manutenção da saúde; (3) trabalho em equipe, com médico, enfermeiro e pessoal auxiliar, inclusive agentes comunitários de saúde; (4) foco da ação dedicado a populações de territórios bem definidos e explícitos; (5) responsabilização sanitária formal de tal equipe; (6) domínio de tecnologias de complexidade alta e baixa densidade: (7) capacidade de resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância no território (que podem chegar a 90% do total). Além disso, ela representa o contato inicial dos usuários com o sistema de saúde, orientando-se por princípios tais como universalidade, acessibilidade, coordenação do cuidado, vínculo; continuidade, integralidade, humanização, equidade e participação social.
Enfim, tem muita coisa por aí chamada de “Atenção Primária à Saúde”, ou “Atenção Básica”, sem propriamente merecê-lo. Ok assim?
E no DF como vão as coisas em tal quesito? Complicado, se não impossível dizer algo sobre isso: na página da SES-DF simplesmente não há informações… Apenas uma relação de UBS aparece, mesmo assim sem identificar se elas são do tipo Saúde da Família (que representa uma aproximação com a APS verdadeira) ou do tipo tradicional, que tem metodologia de trabalho diferente daquela citada acima. Há uma aba denominada “cobertura de Saúde da Família” (a única vez que tal expressão aparece no site da SES-DF, aliás) que simplesmente está vazia. Quando tal informação aparecia na página, algum tempo atrás, a cobertura de SF não passava de 30% da população, agora deve ser menos, dado o esvaziamento de tal quesito. E mesmo assim, entre aqueles 30% já estavam equipes sem médicos, sem enfermeiros, sem agentes comunitários de saúde. Ou seja, o que temos aqui é uma APS do tipo “5P”, ou seja, “prestante para político por placa”.
Assim, infelizmente, se a APS requer qualidade para ser funcional, a nossa aqui no DF talvez esteja bem longe disso.
Mas voltado ao trabalho citado na epígrafe. Ele levou em conta a análise de dados anuais 5.411 municípios entre 2000 e 2014 e a tal qualidade da APS foi medida através de indicadores como a proporção de consultas realizadas por profissionais de saúde qualificados (médicos e enfermeiras), além da proporção de visitas realizadas por ACS. Foram assim avaliadas as associações entre qualidade da APS versus hospitalização e mortalidade por diabetes, doenças cardiovasculares, tuberculose, hanseníase, causas perinatais e maternas, utilização da APS, acesso à atenção secundária e também fatores socioeconômicos.
Foi observada a associação entre as consultas fornecidas por profissionais de saúde qualificados a menos mortes por diabetes; hospitalizações e controle de hanseníase. Igualmente, nos cuidados prestados por ACS, foram observadas menos mortes por condições cardiovasculares e menos internações maternas
Tais descobertas sugerem que o aumento da qualidade com a expansão de profissionais de saúde qualificados e melhor integração e supervisão dos ACS nas equipes de APS pode gerar ganhos de saúde além daqueles obtidos com a simples melhoria do acesso e utilização. Igualmente, a associação entre aumento da qualidade e redução na mortalidade e hospitalizações seria um achado plausível e esperado, pois evidências internacionais já indicavam uma ligação entre a baixa qualidade do atendimento e maiores indices de mortalidade.
Como em todo trabalho científico sério, os autores trazem também indagações sobre a confiabilidade de seus achados. Argumentam, por exemplo, que as dimensões reduzidas dos efeitos identificados podem levantar dúvidas quanto à real eficiência das medidas voltadas apenas para o incremento da qualidade da APS. Comentam o fato de que as transferências federais atuais contemplam a ESF com o dobro de recursos do PACS, o que representa, sem dúvida, um fator de desigualdade entre os dois programas. Tendo em vista que os recursos humanos respondem por grande parte dos custos na Saúde da Família e que o salário médio dos médicos é maior do que o dobro daquele dos enfermeiros e cerca de oito vezes os dos ACS, tornam-se necessários estudos mais profundos sobre a relação custo-efetividade de tais profissionais. Seria importante, ainda, avaliar outros impactos além daqueles relacionados às taxas de hospitalização e mortalidade, uma vez que o acesso a cuidados de qualidade pode estar associado a melhorias não observáveis nas condições de saúde e qualidade de vida em geral.
Em suma, os resultados presentes indicam que benefícios adicionais para a saúde podem ser obtidos para além do foco no aumento do acesso aos cuidados de saúde, para garantir de fato que os cuidados prestados sejam realmente de maior qualidade, o que seria essencial para gerenciar doenças crônicas e garantir a sustentabilidade dos sistemas de saúde. É destacado o papel fundamental dos profissionais de saúde na garantia do direito a ela, desde que sejam altamente qualificados, integrados em rede e devidamente supervisionados. Alertam que os recentes mudanças de financiamento da saúde no Brasil,que reduzem o número obrigatório de ACS nas equipes de atenção primária, de quatro para apenas um, ameaçam de fato a qualidade dos serviços e podem corroer os ganhos em saúde nas últimas décadas.
Em resumo, mais uma conquista social se vê ameaçada pelo descalabro e desumanidade oficiais em relação às políticas sociais e compensatórias no Brasil.
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.