Dr. Flávio de Andrade Goulart*
Não conheço ninguém que defenda a corrupção como algo aceitável. Mas conheço muitas pessoas ditas “de bem”, “de moral ilibada” que não se importam em pedir um atestado médico falso; negociar com o chefe da repartição um ou mais dias de ausência depois que as férias acabaram; aceitar fazer pagamentos sem recibo (ou prestar serviços negando recibo); cumprir carga horária apenas parcialmente; propor ao guarda um “agradozinho” para que ele retire a multa; omitir na declaração do IRPF aquela renda de aluguel – e por aí vai. Para não falar daqueles que recebem depósitos cuja procedência não explicam; carreiam às suas contas bancárias uma parte dos vencimentos dos funcionários a eles subordinados; contratam parentes e apaniguados para cargos públicos; nomeiam gente incompetente para estes mesmos cargos etc. Isso é corrupção também. Sem dúvida, uma coisa é certa: a corrupção existe e impregna nossa sociedade, sem que isso seja monopólio brasileiro, embora nossa “produção” nesta área seja verdadeiramente tsunâmica – ou amazônica (antes do desmatamento). Na saúde, então, nem se fala.
Com efeito, existem pesquisas que mostram a correlação entre corrupção e piora nos indicadores de saúde. Mas ao mesmo tempo, a contenção das práticas ilícitas no setor público requer estudos e análises complexos e profundos, com a combinação habilidosa de várias abordagens, não sendo coisa para amadores – ou moralistas de ocasião. O setor de saúde é considerado um dos principais alvos da corrupção no Brasil e também no mundo e nele a corrupção representa uma verdadeira “pandemia”, embora neste caso praticamente ignorada, ao lado de outras que grassam por aí. Mas uma coisa é certa, sua presença enfraquece significativamente o desempenho geral dos sistemas de saúde.
Os corruptos da saúde podem agir de modo não apenas financeiro, mas também processual ou ético. Na primeira vertente, a corrupção se dá nos domínios administrativo e regulatório, nos subornos e propinas, por exemplo; nas outras, ocorre pela escassa atenção ou omissão no controle e na supervisão. Sobrepondo-se a isso, o financiamento deficiente do sistema público, a regulamentação inadequada do setor privado, a não transparência na governança, a débil capacidade das instituições do Estado, a falta de responsabilização dos agentes e a exorbitância dos interesses econômicos de elites poderosas.
Estudos internacionais demonstram que dos sete trilhões de dólares gastos em serviços de saúde no mundo por ano, pelo menos, de 10 a 25% são perdidos diretamente em esquemas de corrupção; que a mortalidade infantil em países com altos níveis de corrupção é quase duas vezes maior do que em países com baixos níveis; mais de 140 mil mortes anuais em crianças menores de cinco anos podem ser explicadas em parte pela corrupção e que em variados países há forte correlação entre saúde precária e corrupção elevada.
O fato é que na saúde, a corrupção se apresenta de variadas maneiras, seja de natureza fiscal, intelectual ou ética, com manifestações traduzidas por absenteísmo de uns e omissão de outros; práticas de pagamentos informais, “por fora”; fraudes puras e simples, como nas licitações forjadas e nas cobranças por serviços não entregues; má gestão de recursos e até mesmo por assaltos diretos à coisa pública. A lista é vasta.
E no Brasil, como andam as coisas no campo da corrupção? Nem falemos dos 560 mil mortos ou mais, pois neste quesito a questão é mais de ética ou de caráter do que propriamente material . Afinal, mortes não podem ter preço. Mas vacinas compradas acima do custo; protelações de licitações de aquisição de insumos; negociações escabrosas na calada da noite; letargia nas decisões; nomeação de fardados incompetentes para postos para os quais não estavam qualificados – estas sim, podem ser quantificadas.
O fato é que especialistas alertam para que, na verdade, não há consenso absoluto a respeito das melhores escolhas para se reduzir a corrupção no setor público, pelo menos de forma isolada. Mas apontam, em todo caso, algumas intervenções promissoras para aprimorar a detecção e a punição da corrupção, a começar pela delegação de responsabilidades a avaliadores independentes, além de outras medidas que incluem, por exemplo, a proibição de que os médicos aceitem benefícios da indústria farmacêutica, o controle interno mais rigoroso dos serviços de saúde e o incremento da transparência e da responsabilização nas movimentações financeiras e processos de compra e contratação de serviços.
Aspecto sombrio e de difícil controle é a chamada captura do Estado pelo interesse privado, demonstrada pela capacidade intencionalmente fragilizada das instituições do mesmo, o que pode não ser totalmente susceptível de reformas restritas ao setor saúde, no qual a corrupção leva não só a desvios de recursos como a direcionamento enviesado de serviços e subsídios, implicando em prejuízos na equidade da assistência e distorções nas prioridades de gastos.
Assim, sistemas de controle verdadeiramente eficazes de auditoria e prestação de contas que não apenas exponham a corrupção, mas que também ajam com base em tais descobertas, são essenciais. Mas isso não pode ser confundido com certo controlismo exacerbado que infesta a administração pública brasileira, na qual se costuma não se preocupar com o necessário equilíbrio entre a gestão e controle, o clássico checks and balances inventado pelos liberais ainda no século dezoito, versus a necessidade de manter, apesar de tudo, o correr da vida nas instituições. O efeito que esses verdadeiros torquemadas das auditorias e do Ministério Público costumam produzir nas organizações públicas é o de um apagão decisório, infundindo nos gestores um temor semelhante ao de crianças inseguras educadas por pais opressores, como afirmou muito corretamente o Ministro do TCU, Bruno Dantas. Assim, quem deveria agir em determinadas circunstâncias acaba por evitar decisões eficazes, por medo de ter seus atos questionados e ir parar na cadeia; ou ainda, pior do que isso, protelar e deixar de decidir o que lhe é obrigação, por estar sempre aguardando um aval prévio dos egrégios Tribunais de Contas. Quem já exerceu cargo público na saúde, como é o meu caso, sabe muito bem o que é isso.
O que as teorias de gestão contemporâneas e a experiência internacional indicam para o enfrentamento de tal questão?
1. Todos os processos dentro das organizações precisam ser explícitos e transparentes e as leis e regulamentos anticorrupção devem ser rigorosamente cumpridos.
2. Recolher e divulgar as percepções do público sobre a corrupção nas instituições constitui forma eficaz de ajudar a medir a qualidade dos serviços públicos e ajudar no controle das distorções.
3. Os direitos dos pacientes devem ser claramente divulgados e um sistema de registro e a investigação de reclamações nos serviços, com o devido encaminhamento das queixas aos setores competentes ou aos tribunais deve ser garantido.
4. Os incentivos de mercado também podem ser usados para regular um sistema de saúde de forma mais eficaz, por exemplo, estabelecendo sistemas de contratação de prestadores, remuneração de pessoal, compra de insumos e serviços baseados em termos de valor e produção de impactos (coisa que as autoridades de saúde no atual governo desconhecem totalmente, haja vista as recentes trapalhadas relativas à compra de vacinas).
5. Incentivos de mercado, todavia, só funcionarão de maneira justa se forem bem concebidos no contexto da regulamentação geral do sistema de saúde e da economia.
6. Do lado da demanda, é preciso aumentar o engajamento dos cidadãos para que eles reivindiquem direitos aos serviços de saúde de qualidade, por exemplo, através de audiências públicas em que os prestadores de serviços expliquem suas atividades, bem como na abertura de canais múltiplos de contato entre cidadãos e governo, que não se atenham apenas às relações burocráticas previstas na lei 8142 (aquela que fala de forma apenas abstrata em “poder deliberativo” e “paridade”, sem garantir de fato que o cidadão interessado possa ser ouvido).
7. Nunca é demais lembrar: vontade política é condição sine qua non para que qualquer resultado positivo aconteça – e a vontade política, é bom lembrar, dificilmente será exercida por quem tem “rabo preso” – o próprio ou o da família.
E por último, mas não menos importante: é de fato desejável que os maus gestores tenham algum temor, mas ao mesmo tempo é preciso reconhecer e estimular os que praticam a gestão de forma eficiente e honesta. Este é um grande desafio, pois o status quo tende a proteger aqueles, enquanto pouco se importa com os acertos dos outros.
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*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.