Dr. Flávio de Andrade Goulart*

O bolsonarismo como fenômeno político existe de fato, sendo inúmeras as análises disponíveis sobre o mesmo, seja de cientistas políticos, sociólogos ou jornalistas, que identificam e tipificam tal fenômeno. Seja lá o que for, para mim, este “ismo” é mais uma questão de caráter do que de ideologia. Ou ainda de ética (ou estética). Cabe a pergunta: existe um bolsonarismo em saúde? Para definir um pouco melhor o fenômeno, recorro ao jornalista Philipp Lichterbeck, que escreve no portal Deutsch Welle, o qual,apesar de estrangeiro, parece conhecer muito bem o Brasil, ao descrever os “cinco pilares” do fenômeno, que na verdade dão sustentação a todo um pensamento da extrema direita no Brasil. São eles: (1) militarização; (2) atendimento a uma suposta vontade do povo; (3) messianismo; (4) hostilidade à ciência e (5) anticomunismo. Alguns deles são especificamente brasileiros, outros pertencem ao conjunto de ideias da nova direita internacional. Lichterbeck alerta que é fácil considerar simplesmente “ridículos” o presidente e seus seguidores, já que eles vivem dando oportunidade para isso, mas que há certa metodologia por trás dessa loucura, e reduzir o caso a mero histrionismo de um sujeito “sem noção” seria um erro fatal. Mas além de tal visão de um jornalista, trago hoje aqui algo mais filosófico, ou seja, as reflexões de Zygmunt (ou, aportuguesando, Segismundo) Bauman.
Bauman foi um filósofo polonês, cujo pensamento tem uma trajetória curiosa. Filho da família judia perseguida pelo Nazismo, teve que se exilar de sua terra natal, mas a ela retornou como combatente contra os nazistas. Fez carreira militar e pertenceu ao exército da nova Polônia, então sob domínio comunista e forte influência soviética. Mas sua independência em relação aos dogmas vigentes em tal ambiente logo o tornaram, de novo, um exilado. Radicou-se, então, na Inglaterra, onde foi professor na Universidade de Leeds até a sua morte, em 2017. Um dos conceitos sociológicos originais desenvolvidos por ele foi o de modernidade líquida, para configurar uma época em que as relações sociais, inclusive amorosas, além das econômicas, políticas e de produção se tornaram frágeis, fugazes e maleáveis, à maneira dos líquidos. Tal mudança se opõe ao conceito de modernidade sólida, vigente secularmente até meados do século 20, quando as relações sociais eram, segundo ele, estabelecidas de maneira mais firme e duradoura. Para Bauman tal mudança não representa propriamente uma ruptura com o estatuto anterior, mas sim uma continuação, só que conduzida de maneira diferente. A tal liquidez pode parecer vantajosa em alguns aspectos, mas segundo Bauman ela pode ser também porta aberta para distopias um tanto sórdidas. A partir dessas ideias tentarei aqui desenvolver uma explicação do bolsonarismo e o negacionismo científico peculiar ao mesmo.
Ao vermos a horda bolsonarista em ação, seja soltando fogos contra o prédio do STF, pedindo intervenção militar, se acotovelando para aclamar seu pretenso “mito”, negando o risco de contágio na atual pandemia, entre outras barbaridades, é forçoso perceber a presença de algumas das características daquilo que Bauman considera sinais de um novo tempo marcado pela fluidez (modernidade líquida, nas palavras dele), mas sem dúvida distópico. Isso se evidencia, por exemplo, pelos fetiches compartilhados pela massa que se mantem presa ao imaginário propagado pelo ex capitão, como, por exemplo: a crença em uma promessa de felicidade e de grandeza, com fundamentos na pátria, na família e em Deus; a segurança a ser conquistada através do armamento das pessoas; o vislumbre de um “Brasil grande”, retroagindo a um sonho da ditadura militar; a força do individualismo empresarial, religioso, pessoal; a conclamação a um modo de vida self-made (“deixar de ser maricas”, “parar com mimimi”, voltar urgentemente ao trabalho, por exemplo); a transferência de culpa a terceiros, geralmente identificados como comunistas, esquerdistas, chineses, interesses estrangeiros, prefeitos e governadores; a aceitação do medo como instrumento de ação política; a desconfança não só em relação ao “sistema” (seja lá o que isso for), mas também em relação às conquistas da ciência, entre outros aspectos. Acima de tudo, a crença, e mais do que isso, a devoção a um “mito” (que traz consigo um outro cortejo de mitos) traduzido pelos acólitos como o Salvador, o Cavaleiro, o Atleta, o Militar Destemido, o Homem Forte e “imbrochável” que não fraqueja.
E por aí vamos. Zyg Bauman já tinha percebido a raiz de nossa tragédia. Mas o pior é que nem ele nem nós sabemos ao certo como sair dela.
Vamos então ao bolsonarismo sanitário.
O primeiro aspecto a ser lembrado não poderia deixar de ser o negacionismo científico, propagado pelo mandatário e seu cortejo de forma exacerbada ao longo da pandemia de Covid-19. Onde há bolsonaristas, como é fácil constatar, tem alguém negando alguma verdade à qual a ciência já conferiu legitimidade, seja a respeito do uso da cloroquina e outros medicamentos, dos efeitos da vacinação, da potencialidade do contágio, das medidas de isolamento ou da gravidade dos sintomas da doença. Tudo isso parece derivar diretamente de algo que também se faz no EUA, graças ao trumpismo, mas aprofundar tal questão seria insistir no dilema do ovo e da galinha, para lembrar que isso, na verdade, faz parte do universo autoritário populista professado lá e cá.
Desvalorização de conquistas e realizações anteriores ou de origem em terceiros, mediante filtro ideológico. Ideologia, aliás, é só a dos outros, pensam eles. Isso seria um derivado do quesito acima, mas aqui apresenta uma feição mais política do que científica. O ataque ao Programa Mais Médicos é um bom exemplo disso, mas de certa forma a rejeição à vacina chinesa e ao trabalho do Instituto Butantã, associado ao Governo Doria, a acusação de “balbúrdia ” nas universidades, também fazem parte de tal quadro.
Estranhamento em relação a tudo que não é costumeiro. Na perversa lógica bolsonarista tudo que é novo ou venha de realidade estranha à ideologia professada pelos militantes é rejeitado ou posto em desconfiança. Militantes (de qualquer coloração, aliás), são aqueles sujeitos que recortam o mundo em janelinhas e passam a enxergar tudo através delas. Isso não acontece apenas em relação às situações citadas acima, de fundo científico, mas também em relação a costumes que começam a se difundir e serem aceitos pelo mundo a fora, inclusive juridicamente, como é o caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, das considerações relativas a gênero, do conceito ampliado de família, do aborto legal, da não-naturalização do estupro, da obrigatoriedade de proteção individual, do valor das vacinas e das medidas preventivas em saúde, além de outras situações.
Obediência e fidelidade irrestritas ao líder condutor. Aqui há um encontro forte e definitivo com a ideologia que orienta o fascismo. Obediência é tudo e mesmo a remota possibilidade e de que ela seja negada ou contrariada já custou a cabeça de dois Ministros da Saúde em plena vigência da pandemia, além da compulsória fidelidade de todo o conjunto de auxiliares do Presidente. Isso ficou traduzido de forma espantosa pela proverbial frase recente de Pazuello, o comandante-de-guarnição na saúde: aqui uns mandam, outros obedecem. Mesmo que seja contra as regras da ciência e do bom senso. E sempre com o aplauso da claque que ordinariamente frequenta a beirada da cerca do Palácio da Alvorada.
Meritocracia e aparelhamento institucional. Isso tem como diretriz irrevogável a seguinte tese: quem não concorda comigo é meu inimigo. Valeu para auxiliares que acabaram por perder prestígio, como Moro, Mandetta e aquele outro Ministro da Saúde cujo nome ninguém mais se lembra e continua valendo para pessoas ou grupos situados mesmo fora da esfera do governo e não sintonizados com ele, tais como, comunidade científica, OAB, estudantes, manifestantes contrários em geral. Já os que estão de acordo com o governo passam por um processo sui-generis de seleção “meritocrática”, no qual o que conta é a fidelidade e a não-contestação de ordens que vindas de cima, não a competência técnica e o conhecimento. Isso se dá não só nas nomeações de ministros, mas também de cargos de outras esferas, nos quais o governante é responsável legal por indicações, como Ministério Público, AGU e STF. Organismos externos ao governo, mas a ele sintonizados, como são os casos notórios da FIESP, do Conselho Federal de Medicina e da Associação Medica Brasileira, entre outros, procuram obedientemente fazer a sua parte, mesmo não sendo obrigados a isso. É isto que denomino aparelhamento das instituições, ainda não praticado tão intensivamente no Brasil, mesmo nos anos da ditadura.
Apologia das redes sociais. No atual governo, vale o que está registrado no Facebook, no Instagram ou no WhatsApp, quando não nas lives presidenciais semanais, não nos textos sérios e referendados cientificamente ou na mídia independente. Assim ocorre, por exemplo, com a indicação de medicamentos para o Covid, a validade de vacinas e outros procedimentos médicos e até com a escolha dos inimigos da vez em relação aos interesses nacionais. Trata-se de um quadro de extrema valorização e consequente tomada de posição em função de informações circulantes em redes sociais, inclusive em questões de interesse nacional evidente, como foi o caso recente da negativa em adquirir a vacina chinesa após um comentário dirigido a Bolsonaro por um ignaro membro de sua milícia digital.
Modelagem a partir de realidades externas. Não é só a Trump e aos EUA que se aplica o presente postulado. O olhar para fora do bolsonarismo é seletivamente atento, dentro de uma visão antolhada e enviesada, que insiste em propagar que ideologia é só a dos outros. Se a vacina é chinesa, ela não presta, mas a cloroquina que os Estado Unidos usam só pode ser boa para nós. A tecnologia israelense de transformar água do mar em potável é o que há de melhor. É claro que ignoram o que a realidade nega, como foi o caso da rejeição posterior da cloroquina naquele país, ou que as demais vacinas em teste também possuem componentes chineses, além de que a ciência brasileira instalada no Nordeste já dominava a tal tecnologia da água salgada. O liberalismo econômico à moda de Chicago e Pinochet, professado por Paulo Guedes, representa mais um bom exemplo disso. As redes sociais do bolsonarismo são extremosamente dedicadas a louvar as virtudes da medicina praticada nos EUA, ao mesmo tempo que negam, com veemência, a qualidade dos médicos formados em Cuba, ignorando que os indicadores de saúde neste país são superiores àqueles vigentes na potência mais ao Norte.
Bonapartismo. Isso representa uma forma de ideologia política inspirada na maneira como Napoleão Bonaparte governou. É o mesmo que Cesarismo, numa referência ao todo-poderoso imperador romano. Suas características principais são: culto à personalidade; esvaziamento do Legislativo e do Judiciário perante o Executivo; exercício desmedido de um suposto carisma pelo governante; liderança autoritária; antiliberalismo político. Precisa dizer mais alguma coisa? A questão se torna especialmente intensa no Brasil dada a aceitação acrítico-mítica com que o grupo bolsonarista encara seu líder, inclusive nas questões de saúde, que faz lembrar o título de Duce (condutor) que Mussolini atribuía a si próprio. Complementam o quadro a pletora do governo com agentes militares, inclusive na saúde, enquanto a manada aplaude e pede mais. Afinal de contas já se reivindicou até uma intervenção militar no Brasil. Não é que ela chegou?

*Dr. Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.

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