Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Imagem do Brasil disfuncional de hoje em dia: os chefes militares ameaçam botar pra quebrar se a CPI insistir em investigar seus pares. Pode? Não pode… Ainda mais partindo de uma corporação que vê a cada dia um punhado de seus membros denunciados por incompetência e até mesmo por improbidade. Tem Centrão também no olho deste furacão… Mas ao contrário dos militares, esta facção política não chia, apenas flexiona um pouco mais a espinha, à espera de que o governo atenda seus interesses ou até mesmo que venha um novo governo, ao qual ela aderirá sem pestanejar, como é de seu costume. No estado de lambança desorganizada que se instalou no Ministério da Saúde, com fardados de um lado e paisanos do outro, unidos na elaboração de falcatruas e malfeitos diversos, é difícil saber quem tem menos razão ou probidade. Todos são ou se tornaram suspeitos. Encontros estranhos em chopperias para negociar propinas; cabos de polícia se arvorando a executivos internacionais; cargos ocupados por pessoas prosaicas; coronéis faturando com empresas ad-hoc: é tudo com esta turma mesmo. Mas as chefias militares não querem que se investigue ou mesmo se fale disso… Aliás, nem precisaria de CPI, as declarações das autoridades, inclusive do Presidente da República, confirmam pencas de malfeitos a cada dia que passa. Enquanto isso, do fundo de suas covas, mais de meio milhão de mortos observam a cena trágica. O certo é que enquanto o Centrão já está desmoralizado e o Capitão perdeu totalmente o rumo, faz tempo, os militares pareciam manter alguma credibilidade – mas mostram que já abriram mão disso. Mas convenhamos: o tal “mito” da administração militar extensiva a atividades civis tem algum fundamento?

Vamos aos fatos: vejo na imprensa que ainda existem 19 militares em postos chave de comando no Ministério da Saúde. Nada menos do que sete já foram incriminados na CPI. . Como disse alguém: quem vai ao bailão não pode reclamar que lhe pisem no pé. De que estão reclamando suas excelências, os comandantes?

Já foi dito uma vez – e os fatos comprovam – que a guerra é assunto demasiadamente sério para ser entregue aos militares. A saúde seria séria o bastante? Hoje no Brasil, à falta de inimigos externos, e sob as graças de um ex-capitão destrambelhado, múltiplos setores da administração pública civil têm sido entregues a militares, desde simples tenentes até generais estrelados. Assim , no Ministério (agora chamado “milistério”) da Saúde, se organizou uma verdadeira caserna, com “elementos” que receitam, formulam pareceres médicos, se arvoram de sanitaristas O atual ministro já demonstrou que não tem aptidões ou condições de mando, mas apenas de obediência cega, portanto vê-se que quem ainda manda por lá certamente não são os civis como ele. Nem na ditadura militar tal coisa aconteceu.

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Mas vamos ao que interessa: esta decantada eficiência dos militares na gestão da coisa pública seria algo de fato comprovado empiricamente? Tenho sérias dúvidas quanto a isso…

Militares, mesmo na variedade “profissional”, não necessariamente “aventureiro-golpista”, são treinados dentro de uma lógica que guarda pouca semelhança com aquela necessária à gestão das demais instituições humanas, seja em períodos de paz ou de guerra.

Militares têm inimigos a combater. Quando falam em alcance de metas pensam em amontoados de corpos ou de prisioneiros. Na melhor das hipóteses, em léguas de territórios conquistados. É assim que medem o sucesso de suas ações. Uma gente que conta vítimas, não pessoas salvas.

Militares trabalham em sistemas de rígida hierarquia, em cadeias de comando que, caso contrariadas, levam o recalcitrante à “cadeia”. Não há diálogo e convencimento mútuo, mas sim obediência a ordens. Imaginem algo assim numa repartição pública civil ou numa empresa de qualquer natureza. Não daria certo, nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. Ou, quem sabe, na Coreia do Norte?

Seria possível imaginar, no meio militar, um general consultando uma patente inferior à dele sobre determinado procedimento, seja na guerra ou na paz, mesmo que a expertise do subalterno em tal assunto fosse unanimemente reconhecida? Difícil, se não impossível, constatar algo assim nos quartéis. Talvez algum sargento, exímio na produção de churrascos, servindo ao general como ordenança nos finais de semana, pudesse ser ouvido – mas apenas neste assunto específico. Na administração civil este tipo de ausculta é coisa rotineira.

Militares pensam em guerra, em tropas que devem avançar contra outras tropas, em posições predefinidas ou inspiradas por manuais de estratégia geralmente concebidos no século XVIII, quando a “logística” (palavra que voltou à moda com a militarização atual da saúde no Brasil), tinha como elementos componentes os fuzis de repetição, as baionetas, os canhões móveis, os “infantes”, os cavalos e coisas deste tipo. Hoje, com a guerra tecnológica, baseada em decisões tomadas mediante algoritmos, com forte presença de computadores, drones, gadgets eletrônicos diversos e que-tais, aqueles manuais não servem para mais nada. E nas empresas e nas instituições públicas atuais as decisões são tomadas baseadas em analises estratégicas, sobre cenários movediços onde se situam e se agitam clientes, fornecedores, apoiadores, adversários, além de simples interessados, que mesmo tendo ideias divergentes não devem ser tratados como inimigos. O consenso é o que importa.

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A noção de “usuário” ou “sujeito”, ou seja, aquele que tem direitos, nos termos constitucionais, não faz parte do vocabulário ou do universo militar. Isso, é claro, tem importância central na saúde. Mas no campo militar o mundo é dividido entre “nós”, os que juram à bandeira e prometem dar suas vidas à pátria (?) versus “os outros”, os “paisanos”, a quem cabe defender, mesmo que seja ao arrepio de sua vontade.

Endossar uma mania perpetrada pelos superiores, como é o caso da quase extinta febre de cloroquina, mesmo que parta de tenentes fracassados na carreira militar, embora ungidos pelo uso da faixa verde-amarela que lhes dá nada mais do que o falacioso “comando supremo das Forças Armadas”, no meio militar é missão a ser cumprida, não a ser questionada. Custe o que custar! E em clima de guerra, como se instaurou no país, os resultados devem ser apresentados, nem que seja em número de mortos e feridos. Se alguma coisa der errado não seria, certamente, pela bizarrice do que foi ordenado, mas sim por alguma falha na cadeia de transmissão, para a qual se encontrará fatalmente um culpado,

É bom lembrar que foi graças ao comando totalmente civil da Saúde que o Brasil derrotou a varíola, o sarampo, a poliomielite. Não sobrou nada para os militares em tais vitórias. No episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina, ocorrido há pouco mais de um século, os militares participaram com sua habitual violência, mas somente provocando destruição e muitas mortes – mas não o controle da doença.

Por falar nisso, onde estão realmente, hoje, as ameaças reais de guerra contra o Brasil? Elas viriam da Argentina? Da Venezuela? Contra os inimigos internos não imaginários, milícias e tráfico, por exemplo, eles preferem não se arriscar. Mas, e lá fora? Se a questão é a ação militar propriamente dita, nossos fardados estão longe de terem sido bem sucedidos? Tirando sua participação na Segunda Guerra Mundial (na qual, aliás, foram chefiados e supridos pelos americanos, além de terem sido, as cúpulas pelo menos, relutantes em relação ao nazismo), o saldo é amplamente negativo. Cito como exemplos – e nem precisa mais – a Guerra do Paraguai, o massacre de Canudos e as várias quarteladas, às vezes contra inimigos construídos, como em 1935, ou mesmo contra a própria sociedade, em 1964. Ah, mas teve aquela gloriosa missão de paz no Haiti! Sobre esta, o que consta é que alguns dos orgulhosos generais que servem ao atual governo, de pendores golpistas, só fizeram acrescentar à lambança local ingredientes brasileiros. É ruim, não é?

O velho político francês Clemenceau, autor da frase citada acima, tinha razão – e os fatos atuais o comprovam. Não dá para deixar em tais mãos coisas tão importantes como a saúde. Só mesmo a prescrição da famigerada cloroquina.

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É preciso dizer alguma coisa sobre os estragos propiciados ao país também pelo Centrão . Mas fica pra próxima.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.