Dr. Flávio de Andrade Goulart*

ideia do Ministério da Saúde na virada da primeira década deste século (nos bons tempos em que o Brasil tinha ministros da saúde de verdade), de criar as chamadas Unidades de Pronto Atendimento (UPA’s), certamente era preencher o vazio existente entre as unidades básicas da ponta da linha e os serviços emergenciais. Isso era (e continua sendo) um problema que levava muitas pessoas a ocupar indevidamente lugares nas filas das emergências, sacrificando muitas vezes a quem precisava de fato, sem conseguir, tal tipo de atendimento. Passada mais de uma década tal modelo está em cheque, pois não é certo que tenha sido capaz de mudar o panorama da demanda às emergências e, pior, tem o risco de fomentar a competição entre tais unidades e a rede de atenção básica, incentivando a clientela destas a procurar um tipo de atendimento que nem de longe seria desejável, pela relativa superficialidade, não adequação tecnológica e descontinuidade dos cuidados.

Os documentos oficiais da Política Nacional de Urgência e Emergência preveem que uma UPA deve funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana, com capacidade para resolver grande parte das urgências e emergências, ajudando, assim, potencialmente, a reduzir filas nos prontos-socorros dos hospitais. Sua estrutura deve incluir raio-X, eletrocardiografia, laboratório de exames, bem como leitos de observação, atendendo adultos e crianças. Supõe-se que até 97% dos casos demandantes possam ser solucionados em tais unidades, prevendo-se, ainda, que manterão pacientes em observação por no máximo 24 horas. Existem atualmente mais de 500 tais unidades instaladas no Brasil. O movimento de criação de UPA’s no país foi resposta ao reconhecimento de que havia no SUS escassez e baixa qualidade na provisão de serviços de urgência e emergência para a população. Tal escassez e o desempenho insatisfatório de sistemas locais de saúde muitas vezes se manifesta em hospitais sobrecarregados, com muitos pacientes recorrendo ao pronto-atendimento hospitalar para condições mais simples e não atendidas por outros serviços de saúde, eventualmente agravadas por falta de acesso no tempo adequado.

No DF, segundo dados da SES, existem hoje em funcionamento seis UPA’s: Ceilândia; Núcleo Bandeirante; Samambaia; São Sebastião; Recanto das Emas e Sobradinho, de complexidades variáveis. Seria interessante definir a presença concomitante de unidades de Saúde da Família nestas áreas, mas a Sala de Situação da SES-DF não oferece tal informação, sendo possível aferir apenas o número geral de UBS (sem definição se são tradicionais ou de SF). O que se pode perceber é que a locação das UPA’s não guarda relação direta com a rede de atenção básica. Assim, por exemplo, São Sebastiao, que tem o maior número de UBS por 100 mil habitantes no DF, tem também a sua UPA; Ceilândia, que tem a menor cifra de UPA/habitantes, também tem. As demais UPA’s existentes estão em regiões com redes de UBS na média do DF. Ou seja, uma coisa (presença de UPA) parece não ter a ver diretamente com a outra (rede de UBS), pelo menos se tomarmos apenas tal critério. Ver quadro ao final.

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Mas uma coisa é certa: a população procura os serviços que lhe estão mais ao alcance, abertos por mais tempo e também nos finais de semana. E sua preferência por eles, legítima por sinal, se mantém mesmo quando ali se veem apenas encaminhados a outros serviços ou com um pedido de exame nas mãos, sem terem recebido maior aprofundamento relativo aos cuidados demandados. Ou seja, o modelo UPA representa exatamente o contrário do que deveria ser uma boa Atenção Básica, embora leve a melhor na competição com este.

Não encontrei análises mais profundas (nem rasas, na verdade) sobre a eficácia do modelo UPA aqui no DF, por isso tento uma aproximação por minha conta e risco. De uma coisa, porém, estou certo, tomando por base a UPA que existe perto da minha casa, em São Sebastião, a qual, quando ela foi inaugurada, alguns anos atrás, vivia cheia, tinha filas imensas à espera de atendimento. Hoje pouca gente anda por lá. Não é que fila seja algo positivo, mas sua ausência pode ser também um dado de falha ou mesmo fracasso de um serviço de saúde, indicando, talvez, que este possui baixa relevância para a população.

Algumas questões se impõem: as UPA’s que já existem por aqui são poucas ou já bastam para a cidade? Quais foram os critérios (demográficos, epidemiológicos, de acesso viário, de infraestrutura já disponível) que orientaram sua instalação? Qual a relação formal que as mesmas estabelecem com a rede de atenção básica, seja de Saúde da Família ou do modelo tradicional, em seu território ou em territórios contíguos? Da mesma forma, como se dá o processo de regulação e integração entre elas e a rede de emergências e de hospitais da cidade? E o mais importante: qual é o grau da informação que a população recebe a respeito da utilização das mesmas? Qual tem sido o efeito de tal modelo sobre o desempenho de hospitais e sobre a saúde da população?

Nas informações disponibilizadas pela SES-DF só há números, seja de consultas, altas, transferências, recursos alocados, carga de pessoal etc, mesmo assim, sem muita garantia que estejam atualizados. Nada que indique a eficácia real, o impacto ou a qualidade dos serviços prestados por tal rede. Nenhuma resposta, por ora, às perguntas que formulei acima.

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Com isso, resolvi começar a trabalhar buscando estudos realizados em outras localidades, tendo encontrado um bastante interessante com foco no estado do RJ (ver link) e é a ele que recorro agora. Ele avalia os impactos da abertura de UPA’s no estado, um pioneiro na política, utilizando um amplo conjunto de indicadores (demanda por serviços hospitalares e indicadores de desempenho hospitalar, realocação de recursos hospitalares, realocação na demanda por serviços entre estabelecimentos de saúde e saúde da população). Não esquecer que escândalos de corrupção na construção de UPA’s neste estado estão entre os fundamentos do recente impeachment do governador Wilson Witzel.

Mas notem bem, no RJ existem 70 UPA’s para 17,3 milhões de habitantes, ou seja, quatro unidades para cada milhão de habitantes, enquanto no DF elas são apenas 0,5 para cada milhão. Isso indica que as conclusões do referido estudo devem ser tomadas com cautela caso se queira aplicá-las ao DF. São elas:

As UPA’s se tornaram a unidade de urgência e emergência mais próxima para 50% da população do RJ após a expansão da política no estado, cumprindo assim seu objetivo de reduzir a pressão de demanda por serviços hospitalares: o número de procedimentos ambulatoriais realizados em hospitais que dispõem de tais unidades em suas áreas de influência caiu em 18%, enquanto o número de hospitalizações por condições sensíveis à atenção primária foi reduzido em 31%.
Houve também uma redução substancial de 21% no número de óbitos em hospitais e também observada uma queda na proporção de óbitos em internações por condições não sensíveis à atenção primária, o que sugere melhoria na performance hospitalar, o que pode ter tornado possível se realocar recursos em direção a serviços de internação e de mais alta complexidade.
No entanto, ao se olhar para fora dos hospitais, tal quadro positivo é melhor aclarado, por exemplo, na constatação de que ocorreu forte e persistente realocação de mortes dos hospitais para a rede de UPA’s, não se identificando qualquer efeito líquido significativo na mortalidade municipal total, com a exceção de que se revelou um declínio de 15,2% nas mortes municipais específicas por hipertensão e insuficiência cardíaca devido a UPA’s.
Não foram percebidas mudanças significativas na cobertura de Saúde da Família, na atuação do SAMU e na abertura ou fechamento de hospitais em decorrência da abertura das UPA’s, da mesma forma que na cobertura de seguro de saúde privado ou em leitos hospitalares privados per capita.
Grande parte da redução da demanda por serviços hospitalares decorreu de uma queda associada a condições sensíveis à atenção primária, no que é importante refletir em que medida o mesmo resultado não poderia ser obtido através do fortalecimento da atenção primária, por exemplo, não apenas ampliando cobertura como também a partir da ampliação de horários de atendimento e de serviços de média complexidade em unidades de atenção básica já existentes.
Chama também a atenção o fato de que não se verificar reduções significativas em taxas de mortalidade, a não ser para algumas causas específicas; além disso, a realocação de óbitos entre hospitais e UPA’s permaneceu constante ao longo dos anos após a abertura de UPAs, ou seja, mesmo quase 70 UPA’ no RJ, número substancial de novas portas do SUS com serviços de urgência e emergência, os indicadores de mortalidade responderam relativamente pouco à política; isso sugere a necessidade de aprimoramento em sistemas de referência e contrarreferência.
As UPA’s representam, assim, novas portas de acesso ao SUS e têm um papel importante na produção ambulatorial e na absorção da demanda hospitalar, tendo realizado no ano de 2016 aproximadamente 43% de todos os procedimentos ambulatoriais do estado.
Em síntese, a coordenação mais eficiente do sistema de saúde pode levar a ganhos de eficiência e saúde para toda a população, em particular se articulada também a serviços de atenção primária e aos demais níveis do sistema de saúde.

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Em suma, mesmo com a diferença de proporções (4 UPA’s por milhão no RJ e oito vezes menos no DF), algumas das lições acima certamente poderiam ser aplicadas aqui. No mínimo, para afirmar que políticas de saúde devem ser implementadas com base em evidências, não apenas em achismos ou critérios eleitoreiros ou abstratos.

Sobre a presença de UPA’s em um sistema de saúde minimamente organizado algumas definições já existem e devem ser consideradas: (1) que devem fazer parte de um nível intermediário do sistema e não constituírem porta de entrada habitual do mesmo; (2) que os demais níveis, particularmente o das unidades de atenção básica, devem estar completos em termos físicos e operacionais; (3) que mecanismos de regulação do fluxo de pacientes entre os diversos níveis e unidades do sistema devem existir e serem respeitados; (4) que o sistema, como um todo deve ser organizado como rede horizontalizada e dinâmica e não como pirâmide hierarquizada e burocrática.

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Nesta semana a jornalista Nathalia Zorzo da CBN-DF pediu minha opinião sobre a decisão do GDF em contemplar bancários e vigilantes no atual processo de imunização contra a Covid. Minha resposta: trata-se de evidente alteração do fluxo normal, que deveria continuar sendo por faixa etária. Os bancários têm apenas uma minoria, hoje, trabalhando em contato direto com o público e além disso seu risco não é maior do que o de outros trabalhadores, como comerciários em geral, caixas de supermercado e outros, que não estão sendo contemplados. Quanto aos vigilantes a ressalva é a mesma, sendo que muitos deles também não trabalham em contato direto com o público. Isso é influência da estratégia encabeçada pelo governo federal, que quer dar ao pessoal de segurança em geral um estatuto diferenciado em relação ao cidadão comum. Enfim, a medida do governo local é um misto de pressão corporativa, visão eleitoreira e submissão às vontades do Palácio do Planalto.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.