Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Como será amanhã? Responda quem puder. Esta semana descemos a mais um andar do Inferno: 7.494 mortos e 371.719 casos confirmados no DF, onde os vacinados com a 2ª dose pouco passam de 190 mil pessoas, menos de 10% da população. No Brasil 14.237.078 casos confirmados (69.105 nas últimas 24 horas) e 386.416 mortes. Vacinação a passos de cágado, enquanto a doença ainda avança na velocidade de um bólido. Cifras que nem nos nossos piores sonhos poderíamos admitir. Isso ainda vai passar, por certo, mas a cada dia vemos de forma cada vez mais remota a luz do final do túnel (ou seria um túnel no final da luz?). Mas não percamos as esperanças. Que tal começarmos, desde já, a pensar nas transformações que nos aguardam no futuro pós pandemia? Li por esses dias um artigo do arquiteto paulistano Nabil Bonduki (ver ao final), no qual ele faz um exercício deste tipo, mas apenas se atendo a questões de sua alçada profissional, ou seja, em relação ao urbanismo e vida nas cidades. Seguindo tal roteiro, tento aqui aprofundar questões da atenção à saúde em relação a um futuro próximo ou remoto. Penso que é preciso distinguir, em tais “augúrios”, o que deriva diretamente da situação pandêmica daquilo que já vinha sendo previsto como evolução da situação de saúde aqui e alhures, além da possível interação entre uma coisa e outra. Em qualquer uma dessas possibilidades os riscos de piora do que já está ruim não são desprezíveis. Portanto, não nos animemos muito, pois cabe pensar, acima de tudo, numa reorganização profunda dos serviços de saúde, para que se tornem adequados à era pós covid, ao mesmo tempo que deem resposta a problemas antigos da saúde da população. E vamos lá.
1. Para começar, caberia superar um enorme gap, que diz respeito àquela legião de pacientes que tiveram suas medidas de controle, geralmente de condições crônicas de saúde, suspensas ou postergadas pela situação pandêmica, sendo por isso relegados a uma situação de “invisibilidade”, mas também os sequelados pela covid e ainda aqueles que carecem de atendimento sem que estejam propriamente doentes, como as mulheres grávidas, os idosos, as crianças pequenas e outros. Neste aspecto, a resposta já foi encontrada nos melhores sistemas de saúde do mundo, qual seja a valorização e a intensificação da atenção primária à saúde (APS) como porta de entrada compulsória e responsável primordial pela coordenação da trajetória dos pacientes dentro de tais sistemas.
2. A questão dos determinantes sociais das enfermidades, como renda, moradia, transporte, acesso a saneamento e educação, que certamente serão processos agravados pela atual pandemia, devem deixar de ser meras abstrações ou postulados apenas genéricos, itens de discursos vazios, para serem incorporados de fato às práticas desenvolvidas nos serviços de saúde, que devem continuar a fazer o que faziam antes, mas ao mesmo tempo enfrentar as novas questões sociais agravadas pela pandemia e assim rever e recompor seu arsenal de atribuições, no que se inclui a necessidade imperiosa de trabalhar em interação com outros agentes das políticas sociais.
3. A recomposição, ampliação e qualificação da APS requer estratégias especiais de acolhimento e acompanhamento de pacientes não só nas unidades da ponta da linha como ao longo do sistema de saúde como um todo. A mera triagem ou vista d’olhos burocrática deve se transformar em real análise da situação dos pacientes, individualizada e baseada em fatores de risco, de modo que todos os pacientes que acorrem aos serviços, sem exceção, tenham suas demandas analisadas, tratadas ou canalizadas e também acompanhadas, de acordo com os atributos da integralidade e da longitudinalidade que compõem o campo da APS.
4. Impõe-se, assim, uma revisão crítica do modelo de atenção, com foco na questão: estamos resolvendo problemas de fato?, o que implica em estratégias de monitoramento, avaliação e aferição de impactos sobre a saúde das comunidades, de forma intensiva e permanente.
5. A capacitação de novos praticantes (cuidadores domiciliares, de idosos e crecheiras, por exemplo) é fundamental e deve fazer parte da recomposição de serviços acima proposta, com responsabilidades a serem assumidas diretamente pelas equipes, sob liderança da enfermagem, e não apenas transferidas a eventuais centros formadores de RH.
6. A inclusão de novos profissionais nas equipes de atenção primária vai se tornar cada vez mais necessária, seja de forma direta e presencial ou baseada em núcleos de apoio, incluindo-se entre os mesmos fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, especialistas em saúde coletiva, educadores físicos, especialistas em negociação de conflitos, terapeutas familiares, comunicadores, entre outros.
7. Componente fundamental da APS, as visitas domiciliares, devem ser tratadas com especial relevância, não só como fonte geradora de informações essenciais para boas práticas clínicas, como também para acompanhamento direto de pacientes em situações de vulnerabilidade social, em especial dos portadores de sequelas do covid, além de outros, portadores de doenças crônicas, gestantes e lactentes, por exemplo.
8. Além da referida revitalização das visitas domiciliares, o atendimento em ambientes especiais e extramuros, como por exemplo creches, escolas, fábricas e outras instituições coletivas, além de atividades realizadas diretamente nas comunidades deve ser valorizado e intensificado.
9. A utilização de tecnologias de comunicação e informação, o que, aliás, já fazem parte da rotina de muitos serviços de atenção primária e especializada hoje no país, também deve ser aprimorada e intensificada, com o uso de telefones celulares, aplicativos de comunicação, redes sociais, grupos conectados, com numerosas utilizações já testadas e comprovadamente eficazes em termos de cadastramento, educação e promoção da saúde, convocações, consultas à distância e outras formas de contato entre serviços e pacientes.
10. Da mesma forma, assume especial importância o trabalho com mapas, físicos ou virtuais, com foco na abordagem por território, além de protocolos e ferramentas de Epidemiologia, que devem adquirir uso mais intenso, com a devida capacitação das equipes para tanto.
11. A superação de um estado “insular” é necessária, passando os serviços de saúde, nos diversos níveis de atenção, a fazerem parte de uma verdadeira rede, não hierárquica e com circulação ampla e abrangente de informações entre seus diversos pontos, bem como com outras redes.
12. Em prazo um pouco mais longo, ou seja, para os próximos anos, os serviços de saúde devem também se preparar para receber uma nova carga de doenças, para as quais as estimativas, em relação aos anos anteriores, são de acréscimo acentuado e mesmo de aceleração de incidência, aí se incluindo as doenças mentais de diversas naturezas, mas principalmente a depressão, a adição a drogas e o suicídio; a AIDS; as condições ligadas ao estilo de vida (decorrentes do tabagismo e do alcoolismo e do tabagismo); as condições crônicas de maneira geral (diabetes, câncer, artroses, obesidade), além das violências, traumatismos e doenças profissionais em geral.
13. Além das atividades de prevenção e tratamento de enfermidades, a promoção da saúde deve se transformar em atividade essencial nos serviços, com componentes de informação e educação; promoção de atividade física e de hábitos saudáveis em termos de alimentação e vida; controle do tabagismo; controle do uso abusivo de bebida alcoólica; e cuidados especiais voltados ao processo de envelhecimento.
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Agora, com mais detalhes (leia se deseja se aprofundar)
Uma primeira questão é, sem dúvida, a da qualidade da vida nas cidades com a pandemia e depois dela, com seus reflexos na saúde das pessoas. Como o próprio Bonduki aponta, este é um quadro inédito até mesmo na história da humanidade, ou pelo menos da idade industrial. Os modos de morar e de viver, embora possam ter mudanças positivas, apontam para o individualismo, o isolamento entre as pessoas e a segregação, além de comprometer a convivência das pessoas no espaço público. As implicações disso em termos de saúde mental são evidentes. Além disso, sem dúvida, os determinantes sociais da saúde, que abrangem uma vasta gama de fatores, como renda, moradia, deslocamentos, nutrição, acesso a serviços urbanos, agora em colapso, certamente se mostrarão como ponto nevrálgico da ação sanitária, ao qual toda atenção deverá ser prestada. Infelizmente, o que vemos pela frente é a redução da reserva potencial de compaixão e solidariedade social, em uma sociedade marcada pelo individualismo e pelo consumismo, com seus desdobramentos em termos de desigualdades crescentes, criminalidade, violência, inclusive policial.
Outra questão, derivada diretamente da presente pandemia, é a onda de pessoas com sequelas diversas que a situação parece estar criando. Pouco reconhecida ou valorizada a princípio, quando, aliás, pouco se sabia da gravidade do fenômeno, ela se mostra hoje preocupante, ao ponto de gerar a expressão “pacientes invisíveis”, na qual se incluem não só os portadores de tais sequelas como também toda uma gama de pacientes em condições crônicas, cujo controle, por temor dos mesmos em frequentar serviços de saúde ou pelas próprias limitações destes devido à superlotação, acabou sendo afetado durante a presente crise. Com isso os serviços de saúde terão que se desdobrar, seja para atender suas demandas antigas, descuidadas por um tempo, ou as emergentes, que nem previstas estavam até há bem pouco tempo atrás.
Tudo isso dentro de um cenário no qual transformações epidemiológicas e da carga de doenças já se anunciavam desde o final do século passado como marcantes e também dignas de preocupação por parte dos sistemas de saúde. Uma boa questão para demarcar tal tema seria: de que adoeceremos e morreremos nas próximas décadas? Estudos baseados em novas metodologias de pesquisa epidemiológica, denominadas carga global de doença mostram que o grupo de enfermidades relacionadas aos determinantes sociais, que engloba aquelas de natureza transmissível, as doenças ligadas à maternidade, ao período perinatal e também as carências nutricionais, controláveis por medidas de proteção específicas ou promoção de hábitos saudáveis – todas estas têm perspectivas otimistas para a sua redução, embora com grandes diferenças entre as diversas regiões do planeta. Por outro lado, no que se refere à condições não transmissíveis e de natureza crônica ou degenerativa, como é o caso das doenças cardíacas, vasculares, diabetes e câncer, bem como para aquelas decorrentes de lesões por acidentes, traumatismos e outras formas de violência individual e social, a tendência é nitidamente de incremento.
Em tal cenário, possuem especial relevância os conceitos orientadores das práticas dos profissionais de saúde, por exemplo, questões ao mesmo tempo clínicas, éticas e sociais, como foco especial na relação profissional-paciente, aí se incluindo os custos e os benefícios dos serviços de saúde para as pessoas; as prioridades que devem ser assumidas na assistência; a composição e a qualificação das equipes; as questões de quantidade e qualidade da prestação de serviços, além de muitas outras. Assim, é preciso pensar de novo o quadro de profissionais, de práticas e de sistemas de saúde que dispomos, para adequá-los às novas exigências humanas, técnicas e científicas. A nova realidade exigirá profissionais de saúdecom formação mais complexa e ampla, com visão e prática social de promoção da saúde e maior qualificação e capacidade de responder ás múltiplas demandas geradas pela transição do padrão de doenças. Além disso, haverá necessidade cada vez maior de incorporação e ampliação dos quadros de novos profissionais no campo da saúde e entre estes podem ser citados alguns já tradicionais, tais como nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, mas também outros, como uma vasta gama de praticantes de outras habilidades no campo social e da saúde, como os terapeutas de família, cuidadores domiciliares, terapeutas de várias especialidades e até mesmo pessoas das próprias famílias a serem colocadas no papel de cuidadores (mães, mulheres em geral, irmãos mais velhos) – treinados para tanto. Enfim, gente que trabalhe com uma visão mais ampliada não só de assistência, mas principalmente de promoção da saúde. É fundamental que estes profissionais para o século XXI entendam e pratiquem ações de saúde que incluam aspectos culturais, sociais e, fundamentalmente, compreensão e promoção de estilos de vida saudáveis.
Isso tudo com a necessidade de se conciliarem as políticas de governo, por exemplo, para a formação de tais profissionais, com o bem-estar da coletividade e adição de qualidade aos anos de vida, não apenas de sua prorrogação pura e simples. E uma pergunta não se cala, particularmente no Brasil: até que ponto governos que encaram a saúde apenas como gasto, ou que rejeitam a validade das evidências médicas ou políticas na elaboração das políticas de saúde, estariam dispostos a bancar e garantir tal desiderato? Aliás, se não bastassem os problemas derivados do processo de transição demográfica e epidemiológica, como vistos acima, os desafios aos sistemas de saúde tornam-se ainda mais complexos e problemáticos devido aos obstáculos políticos e institucionais vigentes, dificuldades estas caracterizadas pela conjunção da carência de recursos financeiros e a consequente disputa acirrada pelos mesmos; a elevação progressiva dos custos dos serviços médicos, em boa parte, fruto da incorporação desmedida de tecnologia de alto custos; a cultura de hospitalização tão difundida e praticada nos sistemas de saúde; a existência de um quadro profissional limitado e pouco adequado, seja do ponto de vista qualitativo ou quantitativo em relação às necessidades da população, entre outros.
A retração do financiamento à saúde é fato concreto e nada indicar que vá ceder, seja no Brasil e no mundo. Associa-se aí a pouca (ou má) vontade dos governos, o custo com o envelhecimento da população e os gastos galopantes com os insumos da saúde. A pergunta central é: o dinheiro é pouco, mas seria possível conseguir mais? A gestão da saúde também não carece de melhorar? Esta é a vala comum na qual todos os problemas do SUS são jogados, mas é preciso eleger novas fontes de recursos, por exemplo a sobretaxação de produtos nocivos (cigarro, álcool e automóveis, por exemplo), além das grandes fortunas e das rendas da especulação financeira.
Na gestão, há que se abrir os grilhões do verdadeiro túnel de ferro formado por leis que não impedem a corrupção e impulsionam os especialistas em burlá-las. É preciso lembrar que existem muitas inovações gerenciais no cenário mundial, mas que geralmente, no caso brasileiro, são ignoradas, proibidas pelo formalismo jurídico vigente ou até pelas barreiras ideológicas impostas pelos sindicatos e mesmo pelos tribunais. Tal o caso das parcerias público-privadas; do pagamento de serviços baseado em desempenho e produção de resultados; da terceirização de determinados serviços; do desenvolvimento de mecanismos flexíveis para compras e contratação de RH; das práticas baseadas em valor. Mas para isso é preciso um Estado eficiente e mais impermeável aos interesses privados, que na área da saúde têm sido poderosos – e certamente continuarão a sê-lo, seja em futuro próximo ou remoto. Enfim, a falta de “decisão política” é uma desculpa genérica e um tanto abstrata de situar tal problema, pois na verdade existe e até sobra decisão política, embora em sentido contrário, ou seja, ao arrepio do bem-estar comum e da saúde da população.
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Referências:
• https://veredasaude.com/2013/10/10/as-profissoes-de-saude-e-os-desafios-do-futuro/
• https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/03/11/sobre-a-qualidade-no-atendimento-em-saude/
• https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nabil-bonduki/2021/04/as-mudancas-que-a-pandemia-gerou-nas-cidades-vieram-para-ficar.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista

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Breaking News: Estudo explora as variáveis espaciais e temporais da disseminação da Covid-19 no Brasil.
Spatiotemporal pattern of COVID-19 spread in Brazil, novo estudo publicado pela revista Science, utiliza dados diários sobre casos notificados e óbitos para compreender, medir e comparar o padrão espaço-temporal da disseminação de COVID-19 entre os municípios brasileiros. Diversos indicadores combinados com índices de medidas políticas mostram que, embora nenhuma narrativa única explique a diversidade na disseminação, uma falha geral de implementação imediata, coordenada, e respostas equitativas em um contexto de fortes desigualdades locais alimentaram a propagação de doenças. Isso resultou em taxas de infecção e mortalidade altas e desiguais. Os autores são epidemiólogos e demógrafos brasileiros e americanos, a saber: Marcia C. Castro, Sun Kim, Lorena Barberia, Ana Freitas Ribeiro, Susie Gurzenda, Karina Braga Ribeiro, Erin Abbott, Jeffrey Blossom, Beatriz Rache, Burton H. Singer. Acesse o texto em: https://science.sciencemag.org/content/early/2021/04/13/science.abh1558

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E assim vamos descendo a ladeira
Esta semana o sujeito ao qual foi entregue a presidência deste país fez declarações em uma cúpula internacional de dirigentes políticos, prometendo mundos & fundos para salvar a floresta amazônica. Em troca de gorjetas, claro. Fez lembrar aqueles flanelinhas que pedem dinheiro para vigiar seu carro, deixando implícito que se você não contribuir poderá ter a lataria riscada e os pneus esvaziados. Com todo respeito para estas pobres pessoas que não encontram outra maneira de ganhar a vida. Fico imaginando o que diria o dito cujo em evento semelhante, só que na área da saúde: sabemos que é uma doença grave e que precisamos cuidar de toda a população; a vacina é o único modo de nos livramos da covid, além do afastamento social, é claro; só coloco para trabalhar no meu governo, inclusive na saúde, gente competente e responsável; o Brasil honrará seus compromissos sanitários e ambientais com o resto do mundo! Este realmente faz inveja ao Barão de Munchausen e a Pantaleão, aquele do “É mentira, Terta?”.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.