Dr. Flávio de Andrade Goulart*
[O pesadelo prossegue. No Brasil, até a data de ontem, 21 de maio, 446.309 mortes pela pandemia; no DF 8.442. Parece que esta “missão” está realmente longe de ser totalmente cumprida…].
Mas vamos ao assunto de hoje: na minha infância, nos remotos anos 50, entre os conteúdos trazidos pelas professoras do Grupo Escolar onde estudei, estavam – e não poderiam faltar – noções de saúde e higiene, em sintonia com o momento epidemiológico que o pais vivia. Assim, éramos orientados a lavar as mãos após sair da privada bem como antes das refeições; escovar os dentes no mínimo três vezes ao dia; andar calçados; não defecar no mato; lavar bem as frutas e verduras que comíamos (ou deveríamos comer); evitar banhos em córregos e lagoas; dormir com as janelas abertas e até mesmo não manter plantas perto de nossa cama (não me perguntem por quê). Isso tinha naturalmente correspondência com a situação epidemiológica daquele momento, com altos índices de verminoses e doenças infecciosas afetando a mortalidade geral. O que então imperava era uma noção tradicional e disciplinadora de higiene com foco corporal, mais do que ambiental, não propriamente de promoção da saúde. A própria indicação sobre frutas e verduras tinha foco na higienização de tais alimentos, não exatamente em seus benefícios para a saúde. Da mesma forma, o estímulo a exercícios, pelo que me lembro, não fazia parte das preocupações de então. Isso constituía toda a base que aquelas professorinhas haviam recebido em sua formação de “normalistas” e que com a melhor das intenções nos repassavam. Era a famosa “Educação para a Saúde”, que marcou época na saúde pública brasileira naqueles anos e que tinha na respeitadíssima Fundação Serviços Especiais de Saúde Pública (SESP), do Governo Federal, sua instância máxima, em termos de produção de conhecimentos e práticas. Só depois é que vieram as ideias de Paulo Freire substituir este modo de educar higienista e disciplinador sobre o corpo das pessoas…
Sobre tal filosofia educacional: ela tem como base o diálogo entre professores e alunos, visando transformar o estudante em um aprendiz ativo, numa crítica aos métodos de ensino que faziam dos mestres os detentores de todo o conhecimento, e dos alunos apenas “recipientes”. Para Paulo Freire, o professor, além de tratar com respeito o saber trazido pelo aluno, deveria, mais do que transmitir conteúdos, ensiná-lo a pensar, criticar, pesquisar, ser curioso. Para ele a Educação representaria um motor para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e respeitadora. Não é à toa que muita gente não gosta disso até hoje e a era obscurantista que o bolsonarismo nos trouxe assim o confirma.
Assim, a nova educação que veio à luz nos anos 60 inspirada pelas ideias de Freire, tanto na saúde como em sentido geral, trouxe como palavras de ordem a humanização das relações, o respeito aos saberes do aluno, a libertação das pessoas, a pedagogia com foco no oprimido, o ensino como forma de despertar a criticidade, o apoio para que o aluno busque a ampliação de sua consciência social e autonomia, além da construção, através da educação, de uma sociedade mais justa, democrática.
Evidentemente que isso trouxe reflexos evidentes nos conteúdos e nos métodos utilizados até então na chamada “educação para a saúde”. A simples transfusão de conteúdos, como assisti nos meus tempos de Grupo Escolar, foi substituída por um novo apelo à consciência crítica do discípulo, em relação aos objetos sanitários. As verminoses, por exemplo, passaram a ser consideradas como mais um fruto das relações opressoras vigentes na sociedade, a ser pensadas de forma crítica e coletiva, não apenas como responsabilidade individualizada.
Pelo visto, então, graças a tal filosofia pedagógica, houve avanços importantes neste campo. Mas uma pergunta se aplica ao momento presente: mesmo esta “nova educação para a saúde“ seria suficiente para o momento de pandemia em que o Brasil está imerso, uma vez que uma parte sem dúvida significativa do problema tem como fato gerador a má informação ou a desinformação da população?
Para início de conversa, devem ser levadas em conta as posturas claramente negacionistas, anticientíficas e claramente irresponsáveis do Presidente da República, que sem dúvida influenciam diretamente seu plantel de mais de 50 milhões eleitores. Haja vista estudos recentes que demonstram o pior desempenho, em termos de morbidade e mortalidade da covid 19, dos municípios e regiões onde bolsonarismo obteve melhores resultados nas eleições de 2018. Além disso, estudo recentíssimo da Universidade Federal de Pelotas, mostra que as falas presidenciais desprovidas de suporte científico desencadeiam imediatamente ondas de fake news nas redes sociais.
Para um quadro de tal gravidade, ainda mais diante de um discurso de negação da realidade, estratégias adequadas de esclarecimento da população deveriam ser postas em prática, além de tratadas com clareza e qualidade de conteúdo. Mas isso não se daria naturalmente no território de uma educação para a saúde, antiga ou inovadora, que apenas se concentra em salas de aula, reuniões comunitárias e eventos afins, além de cartilhas e outros materiais pedagógicos. Ao contrário, isso deveria ocorrer em ambientes muito mais amplos, de forma apoiada pelas tecnologias de informação contemporâneas, tendo como alvo a sociedade inteira, mediante estratégias de comunicação e informação massiva. Aliás, é assim que as coisas vêm acontecendo ao longo de décadas, aqui e alhures, em relação a problemas sanitários tão diversos como dengue, zika, influenza, AIDS, além de vacinas, acidentes de trânsito, uso de preservativos e de cinto de segurança. E com bons resultados, diga-se de passagem.
Em outras palavras, não se trata de questões ligadas meramente à educação para a saúde, seja no velho regime da higiene, seja nos moldes libertadores de Paulo Freire. Tal questão realmente pertence a outro domínio, que não se situa exatamente na pedagogia tradicional nem naquela do oprimido, mas sim na comunicação em massa. É preciso, acima de tudo, desconstruir as narrativas negacionistas e anticientíficas vigentes, além da neutralização das notícias falsas, que representam uma das marcas do bolsonarismo. Estas são questões centrais, ainda mais importantes do que apenas falar de biologia viral, de álcool gel, de máscara, de isolamento, de vacinas.
Mas a grande questão é: o discurso da comunicação oficial tem sido capaz disso? O problema é que tal questão está situada, hoje no Brasil, no âmago de um verdadeiro nó de contradições, no qual se situam as falas negacionistas do Presidente e a necessidade de esclarecimento do público pelos órgãos de comunicação do governo. O recente depoimento de Fabio Wajngarten à CPI da covid mostrou claramente que tal questão nem é de “capacidade”, mas sim de intenção. O que a comunicação oficial vem fazendo é propagar falsos medicamentos, apregoar a desnecessidade de isolamento, minimizar os fatores de sucesso no controle da doença, negar a gravidade da pandemia, além, é claro de preservar a todo custo a imagem do mandatário, hoje em franco processo de derretimento.
Torna-se necessária, então, uma orientação radicalmente diferente para tal processo. Neste caso é preciso recorrer aos pensadores da Escola de Frankfurt, que denunciaram a dissolução de fronteiras que a mídia, inclusive governamental, produz, fazendo com que informação, consumo, entretenimento e política, sejam combinados em um só produto. Daí surgem, naturalmente, efeitos nocivos na formação crítica de uma sociedade. Para eles a questão deixa de ser informação para se transformar em manipulação, facultando bloquear a formação de cidadãos críticos, para, ao contrário, mantê-los como pessoas alienadas da realidade. Entra em cena assim o concurso de certo “totalitarismo eletrônico”, em que diversão, notícia, informação, propaganda governamental e outros assuntos importantes passam a ser combinados num só produto. É uma crítica que permanece atual, embora formulada nos anos 40 e 50.
Tal descrição não deixa de ser um retrato perfeito de como a comunicação social do atual Governo tem exercido seu papel, transformando educação e conscientização da população em manipulação e verdadeira propaganda governamental e mesmo pessoal do mandatário, assim como dos que lhe são próximos em termos genéticos ou ideológicos. É bem verdade que nenhum governo escaparia disso, mas quando se tem governantes autoritários e que desprezam a democracia e a ciência, como é o caso presente no Brasil, estes agravos podem se tornar dominantes. E o depoimento de Wajngarten, associado às atitudes e práticas comuns de diversas autoridades deste governo ao longo do tempo, demonstra isso à exaustão.
Nos tempos antigos, o emblemático Príncipe comunicava suas ordens ao povo através das figuras dos Arautos, que detinham também certa nobreza e credibilidade. Isso hoje parece que está confiado aos Bufões, que mal se distinguem, aliás, em termos de não-credibilidade e atitudes ignóbeis, daqueles que lhes passam as ordens.
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A semana
Em seu grotesco depoimento à CPI da Covid, Pazuello pelo menos nos ofereceu uma lição inesquecível, ou seja, demonstrou de maneira clara e didática tudo aquilo que um homem público, um ministro que faça jus a tal cargo, NÃO pode ser: mentiroso, ignorante, pusilânime, dependente, obtuso, antolhado, limitado, indiferente. E como se não bastasse, omisso e arrogante. Leia mais… https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/05/20/e-nao-e-que-o-general-nos-deixou-alguns-ensinamentos/
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.