Dr. Flávio de Andrade Goulart*
HORROR! A tragédia continua: no Brasil passamos dos 402 mil mortos e no DF nos aproximamos rapidamente dos 8 mil. Somos aqui 1,44% da população brasileira, mas em número de mortos pela Covid chegamos a 1,93% do total do país, o que não dá para animar ninguém. Enquanto isso, o “homem da casa de vidro” continua divulgando soluções falsas e estimulando chicanas contra a CPI que o investiga. Tudo demorando em ser tão ruim… Mas uma coisa é certa: o modo de lidar com a presente pandemia varia, sim, e existem aquelas situações em que o fracasso é evidente, enquanto em outras os fatores de sucesso estão presentes e são notáveis. É importante frisar isso, porque muitas vezes o senso comum atribui o sucesso ou o fracasso de tal controle às variações da biologia viral, aos brasileiros que não pegam nada até quando nadam no esgoto, ou até mesmo a aspectos imponderáveis ou inexplicáveis. As tais variações biológicas existem, de fato, mas há outros fatores humanos, políticos e sociais, que na maioria das vezes são mais relevantes. Assim deveríamos encontrar explicações mais abrangentes e sempre ancoradas na ciência para as diferenças existentes entre, por exemplo, Brasil e Nova Zelândia; EUA e China; Itália e Israel, casos representativos de bom e o mau controle. Ou, para trazer a discussão mais para perto de nós, entre Uberlândia e Araraquara ou Manaus e Belo Horizonte. O senso comum mais uma vez vai se equivocar, porque fatores como status socioeconômico, dimensão, localização geográfica, relativos a municípios e mesmo países, por si só não explicam as diferenças, ou por outra, mostram que de onde menos se espera podem surgir resultados positivos – ou vice-versa – e isso merece aprofundamento.
Os casos bem-sucedidos que conhecemos, seja de municípios brasileiros ou mesmo de países revelam, acima de tudo, os feitos de uma gestão de saúde realizada em condições adversas, mas que mesmo assim é capaz de produzir um bom governo, na expressão da acadêmica norte-americana Judith Tendler (ver link). Coisa aliás que é difusa em toda a administração, na qual as boas práticas administrativas constituem regra, não exceção. Também Hirschman (1984 – ver link) falou disso, chamando atenção para a mobilização dos chamados recursos morais pelas administrações, ou seja, acumulações simbólicas – por exemplo, o apoio na confiança mútua entre governo e cidadãos. Nesta mesma linha, Robert Putnan (1996 – ver link) estabelece possíveis explicações para o fenômeno do bem governar, por exemplo, como resultado de estabilidade social e institucional, da qualidade da educação, do grau de urbanização, e das características do partido no poder. Coisas assim parecem estar presentes em algumas das experiências de sucesso no controle da Covid 19.
Mas Tendler acrescenta um dado relevante a tal conceito de bom governo, ao destacar a presença de lideranças portadoras de atributos como carisma, voluntarismo, “personalidade”. Mas deixando claro que nem sempre parece ser intencional o papel exercido pelo líder e também que o atributo de uma visão de futuro é uma característica essencial no mesmo. Mas ela adverte que boas experiências administrativas não devem ser interpretadas como resultados diretos e unívocos de tais lideranças, mas sim como o resultado de circunstâncias muito mais abrangentes. E ela fala então de uma dinâmica especial, resultado de articulação sinérgica entre a ação dos governos e da sociedade de usuários. Governos que não são apenas cumpridores de papéis tradicionais, mas sim portadores de ações inovadoras e de construção de algo diferente.
Os acertos da Nova Zelândia, de Belo Horizonte, de Araraquara parecem ter em sua gênese a combinação virtuosa entre governos responsáveis e uma sociedade esclarecida e informada, seja por mérito próprio ou porque o governo se ocupa de informá-la devidamente. Mas outros fatores certamente estão presentes, como equipes técnicas internas competentes e respeitadas, além de convocadas aos processos decisórios; relação de respeito à ciência em geral; incentivo a comunidades epistêmicas (ou de pensamento) externas ao governo; posturas de abertura ao intercâmbio com outros governos e entidades. Enfim, fatores que sem dúvida traduzem, para além de algum voluntarismo das lideranças, visões abrangentes de processo e de futuro e também de articulações sinérgicas e construtivas em diversos níveis.
E cabe lembrar: as tais boas práticas de governo podem acontecer também em municípios pobres e remotos. E assim, numa significativa contribuição a tal discussão, pesquisadores do Instituto de Estudos em Políticas de Saúde (IEPS) e do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV (ver link ao final) analisaram cerca de três dezenas de casos de municípios de pequeno porte do Norte e Nordeste do Brasil que vêm obtendo maior efetividade no enfrentamento à pandemia, sendo estas regiões bastante afetadas pela atual pandemia. A escolha por estudar pequenos municípios se justifica não só por constituírem a grande maioria dos municípios brasileiros, sendo, ao mesmo tempo, pouco estudados. Neste grupo de municípios bem-sucedidos se incluem aqueles que conseguiram barrar o contágio, com baixíssimos índices de doentes por habitantes e também aqueles que, mesmo não segurando o contágio, conseguiram prevenir óbitos e tiveram índices de mortalidade muito baixos. São eles: Tanhaçu (BA), Brotas de Macaúbas (BA) e Santa Helena (PB), no primeiro grupo e Cachoeira do Piriá (PA), Guanambi (BA) e Buriti (MA), no segundo.
Os autores se detêm em analisar aspectos exógenos (conjuntura) e endógenos (estratégias escolhidas por cada município), para obter pistas sobre o que se deve fazer frente a situações como a presente. Nos aspectos endógenos, destacam a ênfase que todos os municípios colocaram nas estratégias de contenção, ou seja, garantir que não se entre em fase de transmissão comunitária, em duas estratégias: (1) na formulação da intervenção, com foco na criação de barreiras sanitárias, mediante protocolos claros e inteligíveis; (2) no nível da implementação da mesma, com utilização eficiente de todos os recursos físicos e humanos disponíveis; respeito aos vínculos sociais e comunitários (capital social disponível) e no uso de tecnologias de informação e comunicação, para apoiar a identificação e monitoramento de casos suspeitos e contatos, além da busca da adesão da população às medidas de isolamento social.
Destacam, ainda, a natureza criativa e original das políticas adotadas, com claro predomínio da funcionalidade sobre uma institucionalidade meramente burocrática. Registram também a ocorrência de conflitos com o empresariado local, eventualmente capaz de bloquear as medidas de contenção, ao mesmo tempo em que se verificou em todos os municípios uma atuação limitada do governo central, o que levou estes pequenos municípios a resolver seus problemas basicamente sozinhos. Este vácuo de poder foi ocupado de forma bastante heterogênea, como atestado pela diversidade de atores presentes nos gabinetes de crise e nas ações de resposta em geral, perfilando-se, entre tais representações os legislativos municipais; apoiadores regionais não especificados; articulações diretas entre prefeitos, além de outras formas de associação religiosas ou agrícolas. Destaque especial na ocupação de tal vácuo de poder a utilização intensiva do aplicativo WhatsApp, o que foi, sem dúvida, sustentado por um tecido social robusto, como ainda pode ser encontrado nos pequenos municípios do Brasil
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Para saber mais…
– https://ieps.org.br/pesquisas/casos-de-sucesso-a-resposta-de-pequenos-municipios-do-norte-e-nordeste-a-pandemia/
– https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/07/11/covid-19-lembrem-se-do-exemplo-de-quem-faz-a-coisa-certa/
– TENDLER, J., 1998. Bom governo nos trópicos: Uma visão crítica. Brasília/ Rio de Janeiro: ENAP/ Revan Editora.
– PUTNAN, R., 1996. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas.
– HIRSCHMAN, A., 1984. Against parsimony: Three easy ways of complicating some categories of economic discourse. American Economic Review, 74: 93.
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Populismo não combina com Pandemia…
Nem bem eu havia dado um formato final no presente post, quando li na Folha de São Paulo de 26 de abril último, um artigo do cientista social Yascha Mounk, professor na Universidade Johns Hopkins e autor de “O Povo contra a Democracia”, no qual o mesmo assunto de hoje é comentado, ou seja, a influência da qualidade dos governos no controle da atual pandemia. Segundo ele, no mundo de hoje está dolorosamente demonstrado que os países governados por populistas estão pagando um preço especialmente alto, seja em prejuízos econômicos, número de casos de Covid ou mortalidade. Sobre o nosso pobre país, ele lembra que a liderança errática de Jair Bolsonaro fez do Brasil uma das nações mais duramente atingidas no mundo, tanto em número de mortes como no colapso do sistema de saúde e até mesmo dos serviços funerários. No México, onde um governo populista de esquerda está instalado, a conduta dada à pandemia vem sendo similarmente irresponsável, com ais de 300 mil mortes além da média e hospitais superlotados em todo o país. Na Índia, também uma grande democracia derrubada por líder populista, o número de casos quintuplicou em menos de um mês e não há um plano coerente do governo de Narendra Modi para enfrentar a pandemia. É mais ou menos o que ocorre também na Bolívia, Equador e Filipinas, Nos Estados Unidos, Joe Biden está demonstrando o quanto um governo competente pode melhorar a situação, mesmo tendo chegado ao poder em uma fase já adiantada do problema. Mounk arremata: Aqueles de nós que nos sentimos horrorizados com a ascensão do populismo nos últimos dez anos devemos interpretar essa realidade como uma confirmação trágica dos nossos piores temores. Fica claro que realmente faz grande diferença, sim, para o bem-estar do público se os políticos se importam com seus cidadãos, se acreditam na ciência e se são ou não restritos por freios e contrapesos que podem controlá-los quando eles saem dos trilhos. […] O preço do populismo se revelou ainda mais letal do que poderíamos ter imaginado antes de esta pandemia terrível se alastrar pelo mundo. Veja o artigo completo em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/yascha-mounk/2021/04/paises-governados-por-populistas-como-brasil-e-mexico-sofrem-mais-com-a-pandemia.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista
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Ainda sobre o papel das lideranças (nos momentos de crise)
Vejam o que nos traz esta semana o articulista da Folha de São Paulo e membro do Instituto Cidades Sustentáveis, Jorge Abrahão, que aponta alguns casos recentes de exercício de liderança autêntica por parte de autoridades em alguns países do mundo: 1. Joe Biden descarta disputar a reeleição (que está muito longe, diga-se de passagem) e decide entrar para a história dos EUA e do mundo, convocando a Cúpula do Clima (na qual o Brasil mais uma vez deu vexame) e se comprometendo de vez com a agenda de redução de emissões, desprezada por seu antecessor. 2. Na Nova Zelândia, onde existe uma liderança feminina, jovem e verdadeira, Jacinda Ardern (totalmente o oposto do que temos por aqui), morreram até agora 26 pessoas devido a Covid-19, ou seja, 0,5 mortes por 100 mil habitantes, enquanto no Brasil chegamos a 180 mortes por 100 mil, 360 vezes mais mortes do que na Nova Zelândia, portanto. 3. Também nos EUA o juiz Peter Cahill condenou o policial branco que matou George “Não posso Respirar” Floyd, um marco no enfrentamento ao racismo, com impacto que vai muito além do país (enquanto isso, no Brasil, dados mostram que 78% dos mortos pela polícia em 2020 são negros). 4. Em sintonia com a atual mudança profunda de rumo nos EUA, senadores e prêmios Nobel assinaram carta a Biden propondo a quebra de patente das vacinas contra a Covid-19, lembrando que, em momentos de crise sanitária, a defesa do interesse comum está acima do privado. 5. No Brasil, pelo menos dois fatos notáveis: as decisões do STF (finalmente!) relativas à suspeição de Moro e a determinação de que a CPI da Covid fosse instalada no Senado. Nem tudo está perdido… Veja o artigo completo: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-abrahao/2021/04/a-importancia-das-liderancas-em-momentos-de-crise-dez-dias-que-sinalizam-mudancas.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista&origin=folha
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Minha contribuição à CPI do Covid…
– https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/05/21/o-mito-da-administracao-militar/
– https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/05/27/militarizacao-na-saude-e-tambem-em-outras-areas-parte-da-solucao-ou-do-problema/
– https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/10/15/e-preciso-criminalizar-o-negacionismo/
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Boa semana para todos!
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.