Flávio de Andrade Goulart*

No último dia oito de abril chegamos a 6.609 mortes pela Covid no DF (345 mil no Brasil), com mais de 350 mil casos confirmados em nossa cidade (13,28 milhões no país), com a taxa de ocupação de leitos públicos e privados por aqui batendo os 100%. Não é mole não… E tal cenário se torna ainda mais dramático diante de certas variáveis associadas a ele, como, por exemplo, as interpretações estapafúrdias sobre a efetividade das medidas de controle emanadas do Palácio da Alvorada e ecoadas pela manada atraída por ele. E mais: a ridícula politização de questões técnicas; o desprezo às evidências científicas reais; a irresponsabilidade na coordenação da pandemia, seja em nível nacional ou em diversos estados e municípios; a derrocada sanitária associada a uma igualmente severa e consequente crise econômica e social. Como pano de fundo, a falaciosa polarização entre saúde e economia, como se a primeira não fosse um pré-requisito essencial para a proteção de empresas e empregos e garantia de renda para os mais vulneráveis. Tudo isso dentro de um cenário de desequilíbrio entre a potência verdadeiramente exponencial da doença e a capacidade de resposta do sistema de saúde. A primeira em escala geométrica; a segunda, aritmética. Há um conceito novo no cenário, segundo o qual estaríamos diante de algo ainda mais grave do que uma pandemia, eis que se nos apresenta uma SINDEMIA. Vamos ver o que é isso.
No Brasil assistimos a uma superposição das famosas “ondas” da pandemia. A terceira delas, que atinge mais intensamente as pessoas portadoras das chamadas comorbidades, justificaria tal nova designação para o fenômeno, ou seja, não mais uma pandemia, mas sim uma sindemia. Trata-se de conceito desenvolvido pelo antropólogo Merril Singer, um neologismo que tem a palavra grega synergos (associação), para significar o fato de que mais de um agente provoca efeito maior que a soma isolada de cada fator presente no processo. Sindemia, então, traduziria um complexo causal de fatores sociais e ambientais capazes de promover ou incrementar efeitos negativos das interações entre condições diversas. Isso seria distinto de simples comorbidade, já que implica em interações entre condições que incrementam as possibilidades de determinados prejuízos aos resultados sanitários. Seria mais apropriado falar, então, em transmorbidade, por envolver interações entre situações diversas, como condições agudas transmissíveis e não transmissíveis, além de condições crônicas não agudizadas e outras que nem são doenças, como aquelas derivadas da maternidade, as perinatais, as de idosos etc. São processos agravados em ambientes de desigualdade e também pela crescente presença de doenças emergentes resultantes da globalização, do aquecimento global, da degradação ambiental e das desigualdades sociais. Cria-se, assim, uma “tempestade perfeita”, capaz de abrir caminho para uma supersindemia, tal como a do Covid.
Advém daí relativos obstáculos à atenção nas condições crônicas, o que, de forma desastrosa, implica no agravamento das mesmas, gerando mortes perfeitamente evitáveis, com tremendo impacto econômico nos sistemas de saúde. Tal desassistência provocada não só pelas restrições de acesso, como pelo temor das pessoas em demandarem os serviços de saúde, faz com que as tais condições crônicas entrem em processo de instabilidade, com aumento de sua gravidade e mortalidade. Este acúmulo de desassistidos é denominado de “pacientes invisíveis”, na expressão de Eugênio Vilaça Mendes (ver link ao final)
Isso vai passar? O historiador israelense Yuval Harari, por exemplo, acha que sim, mas adverte: “A humanidade sobreviverá, a maioria de nós seguiremos vivos, porém habitaremos um mundo diferente. Muitas medidas de emergência de curto prazo se tornarão em hábitos de vida. Essa é a natureza das emergências. Os processos históricos avançam rapidamente. Decisões que em tempos normais levam anos de deliberação se aprovam em questões de horas. Entram em serviço tecnologias imaturas e inclusive perigosas, porque os riscos de não fazer nada são maiores. Países inteiros servem como cobaias em experimentos sociais de grande escala. O que acontece quando todos trabalham em casa e se comunicam somente à distância? O que acontece quando escolas e universidades operam apenas online? Em tempos normais, governos, empresas e juntas educativas nunca aceitariam realizar tais experimentos. Porém, esses não são tempos normais”.
Há que se buscar, portanto, um “novo normal”, também na saúde. Mas isso não pode ser apenas “mais do mesmo”, por certo. É o caso se discutir, por exemplo, a fórmula dos “5 R”, RESOLUÇÃO, RESILIÊNCIA, RETORNO, REIMAGINAÇÃO e REFORMA, aplicável aos sistemas de saúde. Isso será objeto de futuras e próximas postagens aqui neste espaço.
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Nesta semana, entrevista tremendamente lúcida de José Luiz Fiori, Professor de Economia Política da UFRJ, na qual ele dá pistas para a resposta à pergunta que nós todos temos feito aos (raros) oráculos de que dispomos: ATÉ QUANDO? Ver texto completo no link ao final.
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Acesse o texto completo: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-ladeira-pela-qual-pode-cair-jair-bolsonaro/

**Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.