Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Como disse Portinari ao Duque de Edinburgh: Não pinto flores, só pinto miséria… Está difícil NÃO falar de Covid aqui no DF, onde a doença já matou até o dia 1º de abril último (e não é mentira) , 6.150 pessoas, com quase 350 mil casos confirmados. Não há rigorosamente flores, ou melhor, notícias boas no cenário. Vasculhando, porém, a internet, verifico que há uma informação que não chega a ser rigorosamente nova, mas sim de meados do ano que passou, mas que continua merecendo divulgação e louvor – ainda mais em momento com o presente. Eis que a nossa cidade conquistou o primeiro lugar em índice denominado de Município Amigo da Primeira Infância (Imapi), através do qual são avaliados 31 indicadores sociais e de saúde, que incluem a oferta de políticas públicas e de ações, serviços e práticas familiares voltados ao desenvolvimento infantil em termos de saúde, nutrição, cuidado responsivo, aprendizagem inicial, segurança e proteção. Isso foi obtido através do Programa Criança Feliz Brasiliense, o qual, ao contrário do que eu, pelo menos, esperava, NÃO se trata de uma ação da SES-DF, mas sim da Secretaria de Desenvolvimento Social. Tudo bem, desde que aconteça de fato, o locus institucional não importa. Em tal programa, a finalidade é apoiar as famílias em seu papel protetivo, além de ampliar a rede de atenção e cuidado para o desenvolvimento integral das crianças na primeira infância, contando, para isso, com visitas domiciliares, articulação intersetorial, fomento de habilidades das mães com o cuidado relacionados à vacinação em dia; nutrição, a alimentação diária adequada por fase da vida; incentivo à capacidade dos responsáveis, pais ou cuidadores em perceber, entender e responder os sinais das crianças de maneira apropriada, além de foco na oportunidade de integrar pessoas, locais e objetos no acesso à escola na faixa etária adequada e também segurança e proteção, ofertando ambientes seguros dentro e fora de casa. Este programa atua em nada menos do que 100 creches, públicas ou conveniadas, nas quais são atendidas atendem mais de 23 mil crianças, com componentes de educação precoce e acompanhamento especial desde os primeiros dias de vida,
Em matéria anterior, já havia sido revelado, através de uma análise de especialistas da UnB, da UFG e da Codeplan-DF, com foco no período 2005 a 2017, que os números no DF mostravam melhorias na taxa de mortalidade infantil entre 2006 e 2016, de 18,3% para 10,3%, sendo assim uma das menores do país. Como aspecto negativo, o caso específico da sífilis congênita em menores de um ano mostrou aumento nos últimos anos no Brasil, mas também no DF e na região Centro-Oeste, com taxas de 2,56 e 4,7/1.000 no período considerado. O referido estudo concluiu que as condições de vida no DF têm sido importantes para a diminuição da mortalidade infantil e o aumento da esperança de vida ao nascer. Além disso, o controle das doenças transmissíveis continuava a ser prioridade, com foco na vigilância, diagnóstico e tratamento oportuno, pois muitas vezes com o aumento das doenças crônicas, as transmissíveis passam a ser negligenciadas, com impacto relevante na infância.
Mas não custa lembrar que no Brasil como um todo, milhões de crianças podem estar deixando de alcançar seu máximo potencial, uma vez que 61% das 18,4 milhões de crianças de zero a seis anos de idade vivem sob alguma situação de pobreza ou de saneamento e moradia precários. Isso acarreta um verdadeiro imperativo moral, que obriga governos e sociedade agirem de forma a garantir que se estenda a todas as crianças o direito de alcançar todo seu potencial, pois o ônus da omissão para reduzir tal déficit afetaria não somente as crianças, mas toda a sociedade. Sabe-se, ainda, que crianças com problemas de desenvolvimento podem perder, potencialmente, até uma quarta parte da sua potencialidade na geração de renda, adultas, com imenso impacto na manutenção das desigualdades nas próximas gerações.
Voltando ao DF, o estudo em foco enfatiza o forte impacto da Atenção Primária no SUS / Saúde da Família sobre os indicadores de saúde, com foco especial na mortalidade infantil, lembrando-se que mesmo em meio a muitas dificuldades, a Saúde da Família atuou enfaticamente na reorganização das unidades respectivas, com atuação direta em famílias e comunidade, integrando cuidado médico e ações de promoção de saúde e educativas. Demonstrou-se, assim, mais uma vez, que a adoção da SF como modelo de assistência à saúde reduz intensamente a mortalidade infantil e a mortalidade das mães, além de diminuir a mortalidade de adultos no geral. No caso da mortalidade infantil, as melhorias derivam também da produção de mudanças de comportamento e de cuidados de saúde entre as famílias e da melhora da saúde das mães, além do incremento da cobertura vacinal.
Além de tudo isso, o estudo indica que a SF tem efeitos potenciais sobre os resultados, nas crianças, relativos à acumulação de capital humano no seu futuro como adultos, já que crianças atendidas na ESF nos primeiros anos de vida demonstraram maior frequência escolar e menor incidência de problemas de saúde. Desafios persistem, todavia, e o principal deles é o de se aproveitar a estrutura já existente na atenção primária para mensurar e detectar os problemas de desenvolvimento infantil, com a utilização de novas tecnologias já disponíveis. Só assim será possível aperfeiçoar as políticas públicas, inclusive a própria SF, para igualar as oportunidades oferecidas a todas as crianças brasileiras, não importando seu local de nascimento e as condições financeiras de sua família.
***
Resumo da semana (no Brasil): “tudo demorando em ser tão ruim”… Até quando? Quem vai parar o g*n*cida?

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.

Anúncios