Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Resiliência é termo que vem da metalurgia, daí sendo incorporado à psicologia. Naquela, é a propriedade que alguns materiais apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a alguma deformação; na segunda, em sentido figurado, diz respeito à capacidade de um indivíduo se recobrar ou se adaptar com facilidade de eventos danosos ou às mudanças em geral. O termo agora tem sido empregado também em relação a sistemas sociais complexos, como é o caso da saúde, com foco especial em momentos nos quais ocorre redução radical de recursos em função de crises econômicas, medidas políticas de austeridade ou mesmo pelo aumento exagerado de demanda, como no caso presente pandemia. O senso comum, aliás, já indicaria que países com fragilidades na estrutura de seus sistemas de saúde apresentem baixa resiliência face a impactos de tal natureza. A este respeito, acabo de ler um interessante estudo, realizado por pesquisadores brasileiros da FGV (ver link ao final), no qual se busca compreender tal capacidade no SUS em responder a tais choques, de forma a preservar – ou não – suas funções essenciais, mantendo o alcance de resultados em saúde, além da capacidade de se reorganizar em função de possíveis lições apreendidas com a crise. Tudo isso dentro do atual cenário pandêmico mundial, no qual sistemas de saúde bem-estruturados entraram em colapso, em razão do rápido aumento de demanda por internações emergenciais, além de diversos outros efeitos adversos sobre os próprios sistemas e sobre a saúde da população.
A análise dos autores parte de categorias propostas pela Organização Mundial da Saúde, ou seja: (i) liderança e governança, (ii) financiamento, (iii) produtos estratégicos para saúde, (iv) força de trabalho, (v) informação em saúde e (vi) prestação de serviços. Para adaptá-la ao contexto brasileiro, foram destacados os itens: (i) ações de saúde pública e vigilância, (ii) atenção primária em saúde; (iii) atenção especializada e hospitalar, (iv) urgência e emergência, e (v) saúde digital.
Foram colocadas, assim em destaque as fortalezas e fragilidades do SUS. Considera-se que o Brasil estruturou uma razoável cadeia de resposta a emergências em saúde pública, por exemplo, seja no enfrentamento de epidemias (H1N1, dengue e zika), seja em catástrofes naturais ou no apoio a grandes eventos esportivos. Contudo, o SUS tem sua implementação ainda incompleta, com problemas estruturais severos, agravados por recentes políticas adotadas pelo governo federal, o que fez o país enfrentar a presente pandemia com seu sistema de saúde fragilizado e, portanto, com menor grau de resiliência.
Assim, é frágil a governança atual do SUS, que seria crucial para a coordenação da resposta à pandemia, podendo tal fato ser constatado em nível nacional e também em muitos estados e municípios. A conjuntura de crise política prolongada, porém, não tem sido favorável, particularmente diante das atitudes do Presidente da República, o qual, com o argumento de “proteger a economia” vem se antepondo às recomendações de distanciamento social e repercutindo inverdades sobre a situação sanitária. Desta forma, o modelo municipalista autárquico de organização criado pelo SUS, que permitiu, por um lado, capilarizar a gestão e a formação de uma rede básica de saúde, por outro tem sido impeditivo para a implantação de serviços de maior complexidade. Instrumentos estabelecidos e consagrados no SUS, como as comissões intergestores, também têm sido insuficientes para uma efetiva ação integrada e em rede, acarretando acesso precário a serviços e desperdício de recursos, fenômenos muito agravados pelo notório financiamento público escasso do SUS.
Em síntese e em palavras textuais dos autores: o enfrentamento da Covid-19 desnudou fortalezas e fragilidades do SUS. Por um lado, a importância de um sistema de saúde universal, integral e gratuito passou a ser reconhecida de maneira inédita no Brasil. Por outro, suas fragilidades, agravadas pela crise política e econômica e pela condução do governo federal, também nunca ficaram tão evidentes. A pandemia também evidenciou que sistemas de saúde resilientes são essenciais não só para efetivação do direito à saúde, mas também para a manutenção de atividades sociais e econômicas. Certamente, países que tiveram sucesso em enfrentar a doença estarão mais bem posicionados para o retorno às atividades sociais e econômicas, mesmo que a normalidade seja restabelecida só depois da vacinação da população. Num cenário pós-COVID-19, fortalecer o SUS e aprimorar sua gestão devem estar na agenda da saúde e de outros setores da sociedade.

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Veja o texto completo: A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19 Adriano Massuda ¹ Ana Maria Malik ¹ Gonzalo Vecina Neto ¹ Renato Tasca ¹ Walter Cintra Ferreira Junior ¹ ¹ Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP) / Escola de Administração de Empresas de São Paulo, São Paulo – SP, Brasil. Acessível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/83384?utm_source=Publicate&utm_medium=email&utm_content=…&utm_campaign=

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Comentários (Flavio Goulart)
O artigo trata a questão da resiliência do SUS de forma conceitual e, sem dúvida, é abrangente e profundo. Mas certamente caberia indagar, não diretamente aos autores, mas diante da própria situação na qual estamos lançados: esta resiliência não teria limites? Ou por outra: estes limites não estariam já ultrapassados?
Creio que temos que admitir que na verdade o solapamento material (e também simbólico) do sistema de saúde brasileiro está sendo aprofundado com o atual governo, mas sem dúvida já vinha de muito antes. O governo anterior, conduzido pelos que golpearam de morte a gestão petista, já tinha colocado sua pá de terra, com a emenda constitucional que congelou o gasto público social, além de outras medidas igualmente restritivas para a área, nisso se somando a designação de uma equipe dirigente para o MS totalmente alheia, se não totalmente divorciada, do espírito de direito social e de relevância pública da saúde, alicerçado na Constituição de 1988. Os governos do PT foram menos ostensivos em suas omissões e desfigurações do SUS, mas mesmo assim pouco fizeram no sentido de dotar a área do quinhão financeiro que lhe era reconhecido. Nas nomeações de Ministros para a Saúde não fizeram por menos, colocando às vezes autênticas raposas para vigiar o galinheiro. A defesa do SUS ficou apenas no discurso, pelo que se viu ao longo das trocas sucessivas de Ministros, muitas delas feitas para contentar os interesses daquele mesmo “Centrão” que ainda hoje dá as cartas no país.
A história do SUS, em seus trinta anos, é de certa forma inglória, mostrando um percurso de revezes frequentes, com alguma vitória esporádica, logo eclipsada pelo domínio de forças avessas à ideia matriz de 1988. Mostrou-se assim, desde seu início, o desembarque de aliados e forças apoiadoras do primeiro momento, como foi o caso da atitude do sindicalismo mais avançado do país, aquele dito “do ABC”, além de outros segmentos, que cedo passaram a incluir em suas pautas de luta as concessões aos planos privados de saúde. Dentro do próprio quadro de servidores do SUS nem sempre as coisas caminharam de forma mais coerente com as ideias iniciais, sendo também comum a inclusão das pautas de privatização de assistência médica através de planos de pré-pagamento, Aliás, não deixa de ser anedótica, mas possui alta adesão à realidade concreta, a preferência dos servidores do SUS para o atendimento de seus familiares e amigos pelas vertentes privadas de saúde, forjando uma expressão sem dúvida melancólica: o que faço serve para os outros, não para mim.
Seriam fatores externos ao sistema de saúde, mas que incontestavelmente repercutem na visão social e no desempenho do SUS, atacando assim, fortemente por sinal, a suposta resiliência do sistema, que se vê enfraquecido tanto por parte de seus atores diretos, como pelos setores concorrentes privados e, fundamentalmente, pela visão deteriorada que acaba sendo construída socialmente.
Assim, o governo atual, mesmo com a soma incomparável de equívocos materiais e ideológicos que produz diuturnamente, não pode ser considerado como o único ou o maior culpado da atual situação de enfraquecimento e solapamento da resiliência do SUS, embora, sem dúvida, a conjuntura atual de pandemia faz com que tais inação e tais equívocos sejam potencializados em detrimento da visão social e da própria efetividade do sistema de saúde.
Não seria demais insistir, como bem faz o texto que ora comento, sobre a questão do modelo assistencial ancorado na APS que realizaria um forte papel estruturante e de resgaste simbólico das ideias matrizes do SUS. Dentro das variadas vertentes de problemas e respectivas soluções apontadas no artigo da FGV, penso que um papel especial deveria ser conferido a tal questão e não de tratá-la como um item a mais dentro de uma vasta série. Aliás, isso deveria valer também em sentido geral no texto, para que a vasta lista de quesitos de mudança indicados pelos autores fosse ordenada em termos de seu timing, forças de restrição e de apoio, além de cenários estratégicos correspondentes.
Então, concluindo, o que seria possível fazer concretamente para fortalecer o SUS ou, numa visão mais pessimista, pelo menos impedir seu sufocamento? Tenho discorrido sobre isso (ver link ao final) e as ideias que defendo podem ser assim alinhavadas:
1. Foco nos mais pobres é um bom começo e parece óbvio. O problema é que existem pessoas (sérias) que defendem a ideia de que bons sistemas de saúde não devem ter tal foco, mas sim na sociedade como um todo. Há aí um problema até agora não resolvido: os mais ricos – ou pelo menos os não tão pobres – sempre dispõem de maior capacidade de abocanhar os benefícios das políticas púbicas. Isso tem que se dar no plano formal e concreto, aparelhando o sistema – e financiando-o decididamente – para que atendam com total garantia os segmentos mais pobres, com critérios bem definidos. Para os demais segmentos, outras opções.
2. Descentralização, sim, mas com limites e definições mais apuradas. A Constituição de 1988 nos manteve em uma armadilha, que é aquela de conferir enorme poder aos municípios. Na saúde isso foi radicalizado. Os municípios brasileiros são entes absolutamente desiguais e assim é necessária a gestão regional e não meramente local da saúde. Para os municípios pequenos, pobres e remotos, a gestão deve ser concentrada em entes públicos, de modalidade jurídica a ser definida, não necessariamente por cada municipalidade.
3. Arrumar a casa da saúde pela porta da frente. O estado de “queijo suíço”, ou seja, buracos por todo lado, vigente nos serviços de saúde no Brasil, precisa ser trocado pela definição de portas de entrada, dentro de uma rede regionalizada e hierarquizada. Isso vem dando certo em muitos lugares do mundo, não apenas em Cuba ou na Inglaterra, e não há porque deixar de aperfeiçoar e estender o modelo iniciado no Brasil nos anos 90, que comprovadamente tem trazido melhoras importantes nos indicadores de saúde nos locais onde foi efetivamente instalado.
4. O dinheiro é pouco, mas seria possível conseguir mais? Esta é a vala comum na qual todos os problemas do SUS são jogados. Agrava-se o panorama quando se defende a ideia de que o nosso problema não é dinheiro, mas gestão. Falta gestão, sim, mas o montante de recursos disponíveis para a saúde no Brasil é muito pequeno, em qualquer comparação internacional que se faça. É fundamental aumentar o aporte de dinheiro, portanto e isso só é possível se pensarmos em novas fontes, como a taxação sobre as grandes fortunas e as rendas da especulação financeira. Dizer que “falta decisão política” é uma maneira genérica e um tanto abstrata de situar tal problema, mas na verdade existe e até sobra decisão política, embora em sentido contrário, ou seja, ao arrepio do bem-estar comum e da saúde da população.
5. A gestão da saúde precisa melhorar. A gestão pública no Brasil está presa nas malhas de um verdadeiro túnel de ferro, formado pelo cipoal jurídico, no qual despontam as leis de Contratos e Licitações (8.666), Estatuto do Funcionário Público (8.112) e Responsabilidade Fiscal, que têm servido para produzir gestores intimidados e agentes privados audazes e agressivos em suas disputas com o poder público.
6. Público e privado em parcerias, sem preconceitos e com regulação. Há muitas portas e caminhos a explorar nessa relação que é vista com preconceitos diversos. É claro que alguns verdadeiros “cantos de sereia” devem ser evitados, por exemplo, aquele que reza que o setor privado fará melhor tudo o que o setor público faz. Na mesma linha, a crença de que os planos de saúde ditos “populares” seriam solução a ser oferecida à clientela de menor poder aquisitivo e já desgastada pelo mal atendimento que o SUS costuma oferecer, ainda, em muitos lugares. Não se trata de retirar ou apagar o sistema público do cenário, mas sim definir melhor o que as leis denominam de complementar, para incluir não só o que o SUS não faz, mas também aquilo que não é capaz ou renuncia em fazer, por insuficiência tecnológica, incapacidade de alcance geográfico, ou simples decisão.
7. Adicionar valor ao que se faz. No SUS e nas questões de saúde em geral tudo é tratado com base em números. Mas existem outras maneiras de agir, que distinguem entre o que é meramente “volume” e outra acepção, de fundo qualitativo, ou seja, de “valor”. Seria possível falar, então, em uma “saúde baseada em valor”, como modelo de prestação de cuidados de saúde no qual os prestadores, incluindo as instituições, empresas, profissionais e servidores de maneira geral, são pagos na base dos resultados proporcionados aos pacientes, e não apenas em termos de quantidades, seja de consultas, de internações, de procedimentos ou custos. Sempre de forma baseada em evidências, não em “achismos” de qualquer natureza.
8. Precárias não são só a das relações de trabalho, mas também a maneira como a função pública é considerada pelos que nela militam e pelo público. Produtividade, qualidade e resultados e performance individual não deveriam constar dos contratos de trabalho? E os salários ajustados em função de indicadores daí derivados. A sacrossanta “estabilidade” só tem beneficiado os relapsos, ao passo que não favorece os bons de verdade. O importante é medir o impacto na vida das pessoas, mas é preciso ir além: sobre o regime de trabalho: que seja flexível sem ser precário. Em suma, direitos, para serem respeitados, dependem de recursos; recursos, para serem alocados precisam estar disponíveis em fontes apropriadas. E a alocação de recursos deve se ater a prioridades, que nem sempre são valorizadas, seja pelos governos, seja pelas representações dos reivindicantes.
9. A ousadia também deve ser voltada para mudar as leis, não apenas para conservá-las. Sobre algumas das leis do SUS, seja o respeitável texto constitucional, as leis orgânicas ou o que veio depois, é inescapável recorrer ao dito de Bismarck, que comparou a ação legiferante à fabricação de salsichas. Penso que a ousadia verdadeira, em muitos aspectos, não é exatamente a de “cumprir a lei”; nem descumpri-la tampouco, mas sim tomar um “caminho do meio”, que seria o de pugnar pela mudança de leis ou partes delas que estão em franco desacordo com a realidade, dentro da lógica de que fatos sociais e fatos jurídicos são coisas essencialmente diferentes e que uns devem, legitimamente, desencadear os outros.
10. Um pouco de modéstia não faz mal à saúde. Os sonhos que desaguaram em 1988, na Constituição Federal, foram sem dúvida generosos, assim como as pessoas de seus propositores. Mas torna-se preciso questionar se eles se sustentam depois de mais de três décadas passadas, com tantas mudanças culturais, políticas, epidemiológicas, demográficas, pelas quais passou o mundo. É hora de analisar outro projeto, o do SUS possível, sem abrir mão de uma necessária compostura, e dentro de alguns princípios. O primeiro deles é dar um solene adeus às ilusões! – entre estas, a crença de que seria possível dar tudo para todos; a de que todo poder deve ser atribuído aos municípios em matéria de saúde; a do enganoso controle social, que se realiza mais sobre a sociedade do que a partir dela; a certeza de que existiria profunda maldade na ação do setor privado e que sua incompatibilidade com o sistema público é total e inerente a ele; a defesa de que dinheiro é feito de látex e que, assim, os orçamentos públicos são sempre uma questão de decisão política que escapa à lógica aritmética.
É isso aí…

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.