Flávio de Andrade Goulart*
História verídica (e comum pelo Brasil a fora). Um senhorzinho chega para consultar em uma unidade de saúde do interior. Saiu da roça onde mora às quatro da madrugada, em carona de caminhão, conseguindo chegar ao posto três horas depois, sendo atendido só por volta das três da tarde. Não almoçou, apenas comeu uns biscoitos de polvilho que uma das Agentes de Saúde gentilmente lhe ofereceu. Quando indagado se havia gostado do atendimento, disse que não tinha queixas, porque em momentos anteriores havia feito o mesmo périplo e saíra do posto de saúde no final da tarde sem conseguir atendimento. Desta vez, disse ele alegremente, lhe ofereceram até biscoito. Isso seria um atendimento de qualidade ? Pelo visto, para alguns, como aquele pobre cidadão, sim. Mas o certo é que uma das queixas mais frequentes dos usuários dos serviços do SUS diz respeito à baixa qualidade no atendimento, seja relativa ao ambiente onde os cuidados acontecem, à falta de informação, à demora da espera, às carências materiais ou às maneiras como as relações pessoais são conduzidas.
As equipes de saúde da atenção básica no SUS podem até resolver a maioria dos problemas que chegam até a elas, mas continuarão sendo alvo de queixas se não fizerem as coisas com um mínimo (ou um máximo – por que não?) de foco na qualidade. Neste aspecto, o atendimento dos planos de saúde pode até ser pior algumas vezes, mas creio que nós, pessoas que amamos o SUS, devemos nos esforçar em tornar o nosso atendimento melhor do que o deles.
Pensando em tal assunto, lendo o que se publica aqui e alhures, conversando com profissionais que se preocupam com isso, imaginei uma lista de nada mais do que dez ações bastante simples, pouco ou nada onerosas, que podem mudar o perfil da qualidade do atendimento em uma unidade de saúde na porta de entrada do sistema. Elas dependem fundamentalmente de: (1) vontade de fazer; (2) liderança e (3) compartilhamento solidário de ideias e responsabilidades. O objetivo central disso não poderia ser outro: o aprimoramento dos processos de atenção em saúde e dentro disso foco nítido, absoluto e irrecorrível no PACIENTE.
Muitos falam de qualidade começando por citar Platão, Aristóteles, Santo Agostinho. O meu percurso é ao contrário, pois parto do que acontece (ou deveria acontecer) nos serviços reais do SUS, aqui e agora.
Vamos a tal decálogo.
1. Acolhimento é palavra já bastante consagrada nos serviços de saúde. Mas, atenção: na maioria deles isso foi transformado em apenas uma salinha (ou nem isso…) onde é feita uma simples triagem de pessoas, seja para determinar se retornam para suas casas, se devem ir para outros serviços ou, na melhor (mas não a mais frequente) das hipóteses, se receberão atendimento a tempo e a hora. Vamos ao dicionário Houaiss, no qual acolher significa oferecer ou obter refúgio, proteção ou conforto físico, além de dar ou receber hospitalidade, diferindo bastante, portanto, daquela outra acepção, dita triagem, que nas ferrovias apenas indica por qual ramal os trens devem seguir. Então vamos combinar: é preciso trabalhar com conceitos tais como refúgio, proteção, conforto, hospitalidade. Tem que ter um espaço para isso acontecer, sim, mas acima de tudo é necessária uma postura de acolhimento por toda a equipe, desde o guarda da portaria, até o pessoal de limpeza ou o médico, dentista ou enfermeiro mais graduado.
2. É mais fácil dizer sim ou dizer não? Nas unidades de saúde de todo o país é a segunda opção que vale. Observemos as paredes de um Centro de Saúde rural ou de uma Policlínica gigantesca do SUS nas capitais, tanto faz: nelas toscos cartazes feitos à mão ou nas impressoras de computador quase sempre negam e proíbem coisas, desde colocar os pés nas paredes e conversar nas salas de espera, até avisos de que os banheiros não funcionam e que as consultas para diversas especialidades e procedimentos estão suspensas por algum motivo. Quando nada, a terrível ameaça: maltratar funcionário público é crime! Cancelar consultas de última hora também não o seria? Imprevistos acontecem, claro, mas a impressão que alguns lugares dão a quem chega é a de que ali os tais imprevistos constituem rotina, fazendo com que tal apologia negativista e proibicionista se instale e domine o cenário. Mais uma vez, é uma questão de postura, que poderia ser traduzida por um aforismo simples: vamos ser afirmativos – ou, se quisermos ser mais poéticos: é proibido proibir. E que as eventuais negativas fiquem mais raras e sejam devidamente justificadas, face a face, entre equipe e usuários, não a partir daqueles cartazes mambembes, presos com fita crepe nas paredes.
3. Um bom ambiente físico é fundamental. Paredes sujas, cartazes pregados com fita crepe, banheiros atrozes, servidores que não fitam os usuários nos olhos, móveis de aço enferrujados nos consultórios, instalações elétricas em curto circuito permanente, geladeiras que não vedam as portas, sucata empilhada pelos cantos, salas de espera onde não há lugar para todo mundo e os que já conseguiram se assentar ficam ali olhando permanentemente para a nuca dos que estão à frente, em longas esperas. Coisas assim, justiça seja feita, nas unidades privadas de planos de saúde, com todos os defeitos que possam ter, são muito mais raras do que nas unidades do sistema público. Neste aí, certamente haverá quem justifique tais falhas, como problemas das licitações, da burocracia, do encarregado que está eternamente de licença, da reposição de material e tudo mais. Mas por que será que em muitas unidades do país, mesmo públicas, as coisas não são desleixadas a este ponto? Deve haver uma solução, dentro da qual, mais uma vez, entram em cena os quesitos da postura, vontade e compromisso com o objetivo central dos serviços de saúde que é (ou deveria ser) a prestação de serviços a pessoas portadoras de direitos.
4. O tempo importa, sim. Talvez o sistema de saúde tenha herdado daquele da Justiça a determinação de que, ainda que tardia, a justiça triunfará. Bem sabemos que mesmo tardando a tal dama cega muitas vezes falta. Mas na saúde há que ter sempre abertos os olhos, pois as questões em jogo costumam ser ainda mais sérias, de tal forma que retardar a ação necessária simplesmente abrirá caminho, não apenas para a injustiça, mas para a morte! É claro que nem todos que vão a uma unidade do SUS precisam ser atendidos de imediato. Talvez apenas uma minoria necessite disso de fato, mas só há uma maneira de resolver tal dilema, ou seja, de identificar os que precisam de serem vistos de imediato daqueles que não precisam disso. E isso só se resolve quando as pessoas são acolhidas de fato, e não simplesmente “triadas” para uma instância adiante ou postergadas em seu atendimento, conforme já estabelecido no primeiro item deste decálogo. Da mesma forma, protelar qualquer tipo de demanda para semanas ou meses (até anos em alguns casos) significa nada mais do que deixar de atender um direito das pessoas que procuram os serviços e se omitir face a uma obrigação, se não legal, pelo menos ética, dos mesmos. Os serviços de saúde, enfim, deveriam trabalhar com parâmetros de tempo de resolução, que fossem aceitáveis para cada condição ou tipo de paciente.
5. Aqui e agora; agora, mas não aqui; aqui, mas não agora. Há também a categoria dos nem agora e nem aqui… Na sua simplicidade acaciana, estas afirmativas, na verdade, resumem o que é, ou deveria ser, uma distinção essencial nos serviços de saúde. Mas é preciso, com efeito, dispor de uma estrutura e de processos que deem conta de definir, de maneira simples e objetiva, em qual dessas categorias cada demandante dos serviços de saúde se enquadra. A resposta para isso, mais uma vez, é o acolhimento de todos que demandam os serviços. Como já foi dito, não apenas como mais um setor burocrático ou mesmo físico no ambiente das unidades, mas como postura a ser exercida – e também cobrada e aferida – permanentemente por toda uma equipe.
6. Abaixo a ditadura do relógio. Aliás, recusemos qualquer ditadura! Mas em muitos dos serviços do SUS quem manda de fato é o relógio, ou seja, quem chega primeiro é atendido, quem chega depois, não. Há, todavia, instrumentos mais precisos, humanos e éticos para definir quem mais precisa de atendimento e dentro de qual limite de tempo. Aliás, convenhamos, nada mais tosco do que um relógio, um instrumento que mesmo parado ainda é capaz de mostrar a hora certa duas vezes ao dia. Assim, a alternativa é a utilização dos chamados instrumentos de avaliação de risco, cujo pressuposto é o de que se deve recusar aquela “autorização” a ser outorgada apenas pelo relógio em favor de uma análise real do grau de risco que os pacientes apresentam, e assim decidir se eles se destinariam ao aqui e agora ou não. Tal avaliação se articula diretamente com o primeiro item acima, ou seja, o do acolhimento. Uma correta classificação de risco deve não só buscar resolver de fato os problemas de saúde das pessoas demandantes de forma humanizada e resolutiva, mas também ser exercida por profissional da equipe técnica (médico ou enfermeiro) treinado para tanto; realizar escrutínio de ausculta de queixas, expectativas, riscos e vulnerabilidades; responsabilizar-se para dar resposta adequada ao problema; conjugar necessidades imediatas com oferta de serviço disponível, de forma a produzir direcionamento responsável e resolutivo e finalmente decidir sobre o atendimento deverá ser feito e em qual limite de tempo. Isso se realiza mediante protocolos preestabelecidos, que orientam o atendimento de acordo com o nível de complexidade, e não por ordem de chegada, de forma a analisar, de fato, a situação do paciente, bem como a ordenação temporal de sua necessidade, distanciando-se do conceito tradicional de triagem e suas práticas de exclusão, já que todos – e não apenas alguns – serão atendidos ou pelo menos avaliados. No frigir dos ovos surgem aquelas classificações em cores (azul, verde, amarelo, vermelho) ou algum outro tipo de notação.
7. Não fecharás. Fato comum nas unidades de saúde do SUS é as mesmas ficarem fechadas amiúde, sem aviso prévio (ou mesmo com este, porém dado de última hora) por diversos motivos, geralmente ligados a treinamentos, reuniões de planejamento e avaliação, convocações do nível central, além de eventos de outras naturezas. Na pior das hipóteses, por aquelas famosas “pontes”, construídas diligentemente entre os eventuais feriados e os finais de semana. Curiosamente os serviços de saúde costumam encarar este tipo de interrupção de suas atividades como “parte da paisagem”. Mas é extremamente frustrante para os usuários chegarem à unidade de saúde e encontrarem o ambiente fechado, sem qualquer explicação. Imaginem a reação de uma mãe que procura o serviço porque o filho apareceu com uma febre alta e repentina. Sem entrar no mérito de cada caso: isso deveria ser exceção absoluta, mas não é. É claro que treinamentos e reuniões de avaliação são importantes, mas podem ser realizadas em horários de final de expediente ou fins de semana, por exemplo, cabendo, em tais situações, o pagamento de horas extras. Alternativa cabível também seria a definição de um determinado dia, “última sexta feira do mês”, por exemplo, para que isso acontecesse regularmente. Mas que o fechamento seja um evento excepcional e, se necessário, avisado com a devida antecedência aos usuários. Isso, sem dúvida, traria importante contribuição ao reconhecimento e à valorização das unidades de saúde do SUS, principalmente nas periferias das cidades, onde constituem o único recurso disponível.
8. Mesmo com o paciente fora daqui, continuaremos sendo responsáveis. As unidades básicas do SUS devem se conscientizar de suas responsabilidades em relação à acessibilidade e primeiro contato, dois dos atributos da atenção primária. Isso significa capacidade de se organizar para facilitar o acesso das pessoas em relação às suas necessidades em saúde. Daí decorre algo ainda mais nobre, a coordenação do cuidado, fundada na continuidade da atenção, seja por parte do atendimento pelo mesmo profissional, seja por meio de registros apropriados, com reconhecimento obrigatório dos eventuais problemas também abordados em outros serviços e integração disso no cuidado global do paciente. Coordenar a atenção exige da equipe de saúde articulação entre todos os serviços que compõem a rede referenciada. Assim, mesmo que algumas ações não possam ser oferecidas dentro das unidades, as ações da equipe incluem os encaminhamentos e também o acompanhamento para outros serviços.
9. Sala de espera também pode ser um lugar de ação. Salas de espera, por definição, são lugares onde se aguarda alguma coisa. Mas no caso dos serviços de saúde isso costuma ser tratado de forma intransitiva, ou seja, tal espera quase sempre é indefinida, em termos de tempo e objetivos reais. Isso ainda fica pior pela disposição das cadeiras em tais ambientes, nas quais àquele que espera é dado contemplar apenas a nuca do igualmente expectante à sua frente. Já ouvi gente dizer que em tais ambientes não se deve oferecer distrações – uma TV ligada por exemplo – para não capturar a atenção das pessoas em relação ao momento em que forem finalmente chamadas. Discordo… O laboratório (privado) onde normalmente faço exames encontrou uma solução simples e ao mesmo tempo brilhante: contratou músicos para que façam um fundo musical, de forma a aliviar as tensões da espera por uma (ou mais) picadas de agulha que acontecerão na sequência . Nas unidades de periferia certamente haveria possibilidade de trazer artistas locais, não só da música, mas também das artes cênicas, para fazer o mesmo. Isso sem desprezar a grande oportunidade que ali se oferece para atividades de divulgação e debate com o público sobre o funcionamento da unidade, atualização de cadastros, esclarecimentos sobre saúde e outros temas.
10. Um radar sempre ligado. Dona Maria é diabética e deixou de comparecer à unidade há três meses, não sendo mais examinada ali e não pegando mais sua medicação. Seu Joaquim é hipertenso e a última notícia que se teve dele é a de que está internado com um acidente vascular cerebral. Enfim, são pacientes que escaparam ao radar do serviço de atenção básica ou especializada que os atendia. Isso pode? Não deveria. O conceito da integralidade exige que se reconheça a variedade completa de necessidades das pessoas sob responsabilidade das equipes de saúde e a disponibilização dos recursos para abordá-las. Isso se associa com a longitudinalidade, ou seja, atenção ao longo do tempo, implicando em relação intensa e de confiança mútua entre os usuários e os profissionais de saúde. Significa também foco na gestão da saúde populacional, orientada para não só para a melhoria da saúde das pessoas, mas também o aprimoramento da experiência das mesmas com os cuidados recebidos, sem descuidar da redução ou controle do gasto, embora tal conceito de população tenha mais a ver com sua vinculação a um sistema de atenção à saúde, com foco na melhor saúde e não apenas na contenção financeira, o que implica em cuidados seguros, efetivos, oportunos, equitativos e centrados nas pessoas. Em outras palavras, que haja um radar sensível e ligado de forma permanente, particularmente entre os mais vulneráveis, seja no âmbito da população, das famílias ou das pessoas, para o que as visitas domiciliares constituem uma ferramenta fundamental.
Finalizando, não são coisas impossíveis e nem mesmo onerosas de se obter. Tudo é uma questão de vontade de fazer, associada ao exercício de uma boa liderança, na busca de adesão e compartilhamento solidário de ideias e responsabilidades por parte dos servidores. Aqui um dito antigo, que creio ser inspirado em Hannah Arendt, tem valor supremo: os bons devem ser valorizados e estimulados; os maus – que tenham pelo menos um pouco de temor. Para que isso de fato aconteça entre as equipes de saúde sem dúvida é preciso treinamento, mas também explicitação de compromissos e supervisão sobre eles. E se for o caso, cobrança.
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Sobre o tópico específico das filas, encontrei um artigo que analisa em profundidade tal questão. Ver link a seguir.
https://pp.nexojornal.com.br/perguntas-que-a-ciencia-ja-respondeu/2021/5-pontos-sobre-as-filas-de-atendimento-no-SUS?utm_source=Publicate&utm_medium=email&utm_content=5-pontos-sobre-as-filas-de-atendimento-no-sus&utm_campaign=midia-162
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Notícias da semana
O personagem que subsidia nossa desgraça e nossa vergonha apareceu vestido de máscara, quase a dizer que é a favor de vacinas desde criancinha. É claro que isso não é sincero, mas apenas resultado de um olhar que não desgruda de 2022, ainda mais agora que um concorrente de peso adentrou ao cenário.
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Para não deixar sozinhos Felipe Neto, Gilmar Mendes e mais muitos milhões de brasileiros, aproveito este meu espaço para declarar minha opinião: ESTE GOVERNO É GENOCIDA. De fato e de direito.
E para não haver dúvidas sobre o que penso, repito á exaustão: é GENOCIDA, GENOCIDA, GENOCIDA!
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Temos novo Ministro da Saúde. Mas o essencial não muda: o chefão continua o mesmo, com sua proverbial arrogância, além de incapacidade de se informar, grosseria, irresponsabilidade, ignorância, leviandade, insensibilidade etc. Este Queiroga talvez não dure três meses no cargo. Se durar, convém desconfiar dele. Não tenho nada contra grandes especialistas chegarem ao posto de Ministro da Saúde. Adib Jatene era um deles e fez uma das melhores gestões da área que se conhece. Nada contra políticos em tal cargo, também. José Serra será sempre lembrado não apenas por suas trapalhadas com contas no exterior, mas também pela excelente gestão que fez no MS. A diferença é que nenhum dos dois serviu ou prestou continência a um governo irresponsável e genocida como o atual.
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E o acontecimento mais importante da semana, para mim pelo menos, foi o de ter-me vacinado contra Covid! Em ambiente simples (Ginásio de Esportes de São Sebastião, DF), porém com qualidade. Recepção organizada, cadeiras espaçadas para se assentar, espera de no máximo 40 minutos e principalmente tratamento digno a mim e aos demais coetâneos (72 anos) que lá estavam. Saí de lá com ainda mais argumentos para negar os negacionistas (da vacina, do SUS, do serviço público, do direito à saúde). Evoé!
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.