Flávio Goulart*

Não sou natural de Uberlândia, mas residi nesta cidade por quase 15 anos, aí criei meus filhos, fiz muitas amizades, fui Secretário Municipal de Saúde em duas ocasiões, nas administrações de Zaire Rezende. Tenho motivos de sobra para me orgulhar desta cidade, assim como tenho razões agora para comentar o que está acontecendo no campo da saúde local e manifestar, além de minha tristeza, o meu espanto com os fatos atuais. Posso resumir meus sentimentos em uma simples frase: Uberlândia não merecia isso. Com efeito, na cidade das grandes indústrias e do comercio atacadista mais pujante do Brasil, na sede de um polo de convergência ao mesmo tempo geográfico, econômico, rodoviário, educacional, político e mesmo sanitário – uma pergunta não se cala: como foi possível chegar à presente situação de descalabro face à atual pandemia?
Vivemos tal constrangimento no país como um todo, por certo. O presidente que temos na nação é o mesmo que exerce sua influência em Uberlândia. Terá sido por acaso que algumas das tiradas mais agressivas e grotescas de tal personagem tenham sido perpetradas recentemente justamente aí na cidade? Mas o fato é que mesmo diante da terrível situação que acomete o restante do país, os dados de Uberlândia ainda conseguem ser mais assustadores.
Assim, por exemplo, no final do ano que passou, seguindo a tendência nacional, a pandemia arrefeceu relativamente na cidade. Com a virada do ano, todavia, ela se mostrou mais agressiva, mesmo nos grupos que antes não eram considerados de risco. E foi aí que Uberlândia, que já vinha com altos índices, passou a ser um dos focos mais graves da pandemia em MG. As mortes explodiram, de 27 em dezembro, 76 em janeiro e 257 em fevereiro, somando ao final de fevereiro inacreditáveis 1074. Em março, pelo último levantamento, já são contadas 1.371 vidas perdidas. Isso corresponde a uma taxa de praticamente 200 mortes por cem mil habitantes, bem superior à de BH (115) e mesmo do Brasil como um todo (132). Além disso, hoje todos os leitos de UTI na cidade, tanto públicos como privados, estão ocupados e não há médicos, fisioterapeutas, enfermeiros e profissionais da saúde suficientes para demanda tão avassaladora.
Alguma coisa deu errado em Uberlândia. O que teria sido?
O prefeito Odelmo, cujas contradições começam pelo nome, posto que é, ao mesmo tempo, carneiro e leão, já encontrou o culpado: o povo da cidade. Não custa lembrar, aliás, que boa parte deste povo dedicou seu voto ao próprio Odelmo nas últimas eleições, o que nos faz pensar que tal liderança talvez constitua, ela própria, um reflexo perfeito de seus seguidores. Mas a fórmula é velha e gasta. “Povo” é algo muito vago e há que se procurar as influências que este recebe, seja através da história, da cultura ou das tradições políticas. Neste aspecto, não posso deixar de lembrar da luta que foi, há anos atrás, ainda nos meus tempos de morador da cidade, em convencer as pessoas mais pobres a votarem em candidatos progressistas. Indaguei, na ocasião, de um desses eleitores, um frentista de posto de gasolina, porque iria votar no patrono de Odelmo, Virgílio Galassi. Ele, candidamente, me respondeu: porque ele construiu o Camaru. Pensei comigo: quantas cabeças de gado ou cavalos puro-sangue ele possuiria para expor no tal centro de mostra rural que ele valorizava tanto? O “povo” de que fala o prefeito talvez seja constituído por gente assim.
Mas vamos em frente, ainda falando de povo.
Em adição ao fato notório de que em Uberlândia as elites sempre tiveram um imenso poder de influenciar o homem-da-rua, isso por assim dizer criou nos uberlandenses um sentimento de serem pessoas muito especiais, destacadas mesmo do restante dos brasileiros. A história da cidade e seu crescimento espantoso, tanto populacional como econômico, a repercussão dos feitos locais até mesmo além-fronteiras de MG, não deixam de conferir relativa veracidade a tal maneira de pensar. Muito se fala em um “espírito uberlandense”, como se fosse coisa nascida e criada aí mesmo, embora isso não seja confirmado totalmente pela realidade. Com efeito, desde os tempos inaugurais de Felisberto Carrijo, pessoas que vieram de outras plagas também contribuíram e continuam contribuindo para o progresso da cidade. Não fosse o diamantinense JK (acima de tudo cidadão do Brasil e do mundo) ter impulsionado o progresso do Brasil Central com a fundação de Brasília, a história aqui poderia ter sido outra. Mas o resultado disso é que nesta cidade, para o bem e para o mal, a psicologia coletiva se fundamenta no orgulho, na pujança da iniciativa local e no bairrismo. Não é por acaso que que a classe média e média baixa daqui, que forma a maioria da população, se juntou àqueles segmentos minoritários, mas realmente ricos, para dar a Bolsonaro a massacrante vitória nas últimas eleições. E não é por acaso, também, que o negacionismo face à presente pandemia aqui se instalou com força total.
Mas uma coisa é certa: Leão Carneiro não faz justiça ao condenar apenas o “povo’” (seu povo). A trajetória de suas ações à frente da Prefeitura primou pela oscilação de decisões, idas e vindas, contradições, desrespeito às normas científicas – negacionismo, enfim. Tudo culminando com a estrambótica distribuição gratuita de vermífugos à população. Enfim, ao invés de escutar a ciência e as mentes sensatas ele recorreu ao Palácio da Alvorada. E só não se deu totalmente mal porque àquele mesmo “povo” se sucedeu algo pior ainda, com as mortes se acumulando a cada dia.
Quero insistir na minha legitimidade em fazer os presentes comentários. Além do meu amor por esta cidade, lembro a meu favor que emprestei aqui, junto com uma boa equipe, alguns anos de minha vida à construção do sistema local de saúde. Aliás, algo digno deste nome, seja um “sistema” ou “local” na área da saúde nem existia quando Zaire ganhou a primeira eleição em 1982, após décadas de domínio das elites dominantes das quais Leão-Carneiro é hoje herdeiro. Deixamos na primeira gestão, entre 1983 e 1988, uma verdadeira rede municipal de serviços de saúde efetivamente constituída, com mais de 30 unidades urbanas e rurais em funcionamento. Na segunda gestão, entre 2001 e 2004, criamos 36 equipes de Saúde da Família e transformamos a gestão da rede (então esquisitamente terceirizada a uma entidade sem qualquer domínio do tema da saúde pelos mesmos dirigentes tradicionais) em um sistema sob gestão municipal efetiva. Nós estávamos certos, tanto que no intervalo entre uma gestão e outra a Secretaria Municipal de Saúde, tocada pelo meu ex-aluno na UFU Paulo Salomão, deu continuidade a todo projeto que iniciamos. Mesmo depois de 2004 não houve retrocessos. Mas aí veio a pandemia e o negacionismo leonino inspirado no bolsonarismo se instalou – e tudo aquilo deu nisso, ou seja, na atual tragédia.
Duas linhas para comparar Uberlândia com BH. Lá também é uma cidade grande, bem maior do que aqui, aliás. O Prefeito da capital não seria, também, um político de índole política progressista – ao contrário. O “povo” das duas cidades é da mesma natureza. Mas lá a mortalidade é apenas a metade daquela de Uberlândia. Por que seria? Não parece ser difícil encontrar a resposta: uma combinação de exercício de autoridade, apoio na ciência, mais modéstia no bairrismo e perseverança nas decisões. Além de distância daquilo que emana do Palácio do Planalto.
Para encerrar, lamento – e custo a acreditar – que meu antigo mestre na UFMG, além de pessoa responsável pela minha vinda para Uberlândia, em 1975, Gladstone Rodrigues da Cunha Filho, tenha emprestado seu nome e seu prestígio de professor, administrador e líder geracional para coonestar o atropelo, a subserviência e o apelo abominável a medidas sem respaldo científico ora assumidos pelo prefeito de Uberlândia, pelas quais os cidadãos de Uberlândia estão pagando um preço que a história não haverá de esquecer.

*Flávio Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, foi secretário municipal de Saúde em Uberlândia