Dr. Flávio de Andrade Goulart*
É possível acabar ou minimizar as filas nos serviços de saúde? Antes de tentar desenvolver esta questão, é bom avisar: as filas na saúde já existem, são históricas no Brasil, seja na variedade virtual ou física, e na gestão da atual pandemia, diante da incúria e da incompetência do governo federal, seja no conjunto da obra ou no caso específico da vacinação da população, sua tendência é aumentar, radicalmente. Já se disse que a guerra é assunto muito sério para ficar nas mãos de militares; mas e a Saúde, seria séria o bastante? O ministro da saúde (em minúsculas na atual conjuntura), apresentado como autoridade no campo da logística, talvez tenha obtido seus maiores feitos no provimento de “ranchos” para unidades militares na Amazônia, assim mesmo adquirindo suprimentos em algum mercadinho de esquina ou, quem sabe, fazendo campanhas para que os recrutas trouxessem marmitas de casa. Sob a gestão militar da saúde o país garantiu o suprimento de vacinas para não mais do que 20%, não exatamente da população como um todo, mas apenas dos grupos de maior risco. Então, podemos nos preparar para medir as filas de vacinação em quilômetros, da mesma forma que os engarrafamentos de final de tarde em Sampa. Mas vamos ao foco que interessa: o triste espetáculo das grandes filas na porta das Unidades de Saúde, formadas muitas vezes durante a madrugada, presentes não só aqui no DF como em muitas partes do Brasil, ao ponto de terem se tornado “partes da paisagem” urbana, certamente a serem incrementadas a partir de agora, reflete o estado de desorganização e precariedade dos nossos serviços de saúde. Mas não é só isso: caberia indagar, sem dúvida: será que alguns dos que estão ali não deviam ou não precisariam estar? E para os demais, os realmente necessitados, o que importa de fato?
Para começar, um raciocínio simples: alguns dos que estão na fila pertencem realmente à categoria do “aqui e agora”; outros são para “agora”, mas não “aqui”; tem aqueles que são para “aqui”, mas que podem esperar, ou seja, “não agora”, sem esquecer que existe também a turma do “nem aqui e nem agora”, gente de variada natureza, na qual se incluem desempregados, usuários contumazes, curiosos, solitários e por aí vai. Estão ali à procura de companhia, de atenção, de um pouco de humanidade, talvez; para estes, alguns minutos de atenção poderá ser o bastante. Vacina, sem dúvida, é aqui e é agora, desde que haja definição de prioridades, esclarecimentos aos usuários e controle real da situação. E não temos nada disso atualmente, no DF e no restante do país. As primeiras informações da atual campanha de vacinação já mostram, entretanto, que a categoria dos “nem-nem” (nem aqui e nem agora) começa a crescer, com bravas primeiras damas, funcionários graduados, vereadores e outros apaniguados das autoridades nos primeiros lugares.
Enquanto isso, o que nos oferecem as autoridades da saúde, “capitaneadas” desde Brasília pelas notórias nulidades do Ministério da Saúde e da Presidência da República? Enigmáticos “Planos de Vacinação”, exuberantes em gráficos, tabelas, ilustrações, descrição de estruturas, dados demográficos e outras informações, mas que se calam no essencial: quanto é que começaremos a ser vacinados, durante quanto tempo, com que tipo de prioridades, mediante quais estratégias e com que modalidade de imunizante? Qualquer conversa tem que começar por aí.
Mas em termos de gestão do atendimento, o que poderia ser realmente factível para minorar o problema das filas, de forma ética, transparente e objetiva, particularmente para os que estão ali por precisarem de fato da atenção médica? Vergonha na cara seria o primeiro requisito.
Assumido o quesito da vergonha, cumpre se ater a um verdadeiro aforismo preliminar: a casa da saúde se arruma é ela porta da frente. Simples assim… Mas nesta porta, muitas vezes, o real instrumento de gestão é nada menos do que… sua excelência, o relógio. Assim é que quem chega primeiro, consegue atendimento; quem não chega, fica para depois, sujeitando-se inapelavelmente à fila. Mas é bom lembrar que quem chega mais tarde nem sempre age assim por ter preguiça de acordar cedo. Pode ser a mãe de família que teve que despachar, antes, os outros filhos mais saudáveis para a escola ou preparar a marmita do marido, para só depois se dirigir ao serviço de saúde, onde acabará chegando mais tarde do que outros, às vezes menos necessitados de atendimento. Pode ser alguém que acordou mais tarde exatamente por estar enfermo. O relógio, portanto, não deve ser o instrumento gerencial para decidir quem entra ou não entra; quem será atendido ou não será. Este aparelho é incapaz de reconhecer prioridades e há ferramentas mais inteligentes no cenário. Vamos falar de uma delas: os protocolos de acolhimento, aplicáveis diretamente também à situação presente.
Acolhimento pode ser sinônimo de triagem classificatória de risco, como está nos documentos oficiais, mas é mais do que isso. Protocolos de atendimento, eis a questão! Trata-se de algo a ser construído e operado por profissionais de saúde (não por gente da área administrativa), mediante treinamento específico e utilização de roteiros pré-estabelecidos e consensuais, tendo por objetivo avaliar o grau de urgência relativo aos pacientes atendidos, estabelecendo-se, desta forma, uma ordem de prioridade para o atendimento. Representa também um trabalho coletivo e cooperativo, gerando um potente instrumento reorganizador dos processos de trabalho em saúde, além de promover a humanização do atendimento, abrir processos de reflexão e aprendizado institucional, reestruturar práticas assistenciais e construir novos sentidos e valores, avançando em ações humanizadas e compartilhadas, além de ampliar a resolutividade dos serviços de saúde. Entre suas características estão ainda as de promover a escuta qualificada de quem procura os serviços de saúde; classificar e sistematizar as queixas dos usuários, visando identificar os que necessitam de atendimento médico mediato ou imediato; definir os fluxos de atendimento, além de se constituir como como um instrumento de ordenação, orientação da assistência e regulação da demanda dos serviços. Eles não são, todavia, instrumentos de diagnóstico de doença, mas apenas hierarquizam o atendimento de acordo com a gravidade, determinando prioridades no atendimento. Não pressupõem exclusão, mas sim estratificação. No caso da atual pandemia esta graduação de situações já está bem clara e tem consenso universal: profissionais de saúde, idosos, abrigados, indígenas aldeados, portadores de comorbidades… Abaixo o relógio e viva o protocolo, portanto!
Acolhimento, assim, é algo que deve ser encarado de forma mais ampla de que uma simples sala, setor, “cantinho”, ou grupo de pessoas designadas para tanto. É uma postura a ser desenvolvida no âmbito dos serviços de saúde, a ser compartilhada amplamente pelo conjunto de membros da equipe. Trata-se de uma noção que ganhou mais impulso na área de Enfermagem, o que é algo meritório para a mesma, mas na verdade deve ser assumido pelo conjunto, deve fazer parte do “DNA” verdadeiro dos serviços de saúde. Tem componentes operacionais necessários, mas também simbólicos. Na atual conjuntura pandêmica o acolhimento é mais do que necessário, essencial para o bom encaminhamento das diversas soluções, entre elas a vacinação em massa.
Dito isso, é preciso ter um foco de ação, explicitado com clareza, a ser repetido como um mantra: é imperativo reduzir ou eliminar o estoque de filas, não só para vacinar pessoas, mas para procedimentos de outras naturezas. Filas não podem ser “naturalizadas”, pois constituem um forte indicador negativo de qualidade dos serviços. Ampliação de vagas é a ação fundamental, claro, mas que deve ser complementada pela retirada de obstáculos desnecessários que fomentam as filas, por exemplo a desorganização da porta de entrada, as exigências burocráticas indevidas, o regime do “não pode” e do “é proibido”, situações bastante comuns nos serviços de saúde em toda parte. Especial atenção deve ser dada às listas de espera e aos pré cadastros para vacinação, quando existentes, que são necessários por um lado, como instrumentos de acompanhamento ativo para tomada de decisão no processo de redução do tempo de atendimento e foco nas pessoas-alvo, não como informação burocrática passiva e por assim dizer conformista.
A utilização de ferramentas de tecnologia de informação é também fundamental, não havendo mais justificativas para que os serviços de saúde, mesmo os mais simples e remotos, deixem de contar com elas. A convocação de pacientes para vacinação, mediante aplicativos do tipo WhatsApp, a partir de dados de cadastro ativo, já é lugar comum nos (bons) serviços de saúde, pelo menos, dado o fato de que tal tecnologia hoje bastante difundida. Este é também o caso de alguns procedimentos através dos quais os profissionais da atenção básica possam acessar interlocução especializada para definir condutas e avaliar melhor os casos atendidos, em interação com especialistas – as chamadas teleconsultorias. Com isso torna-se possível não só reduzir os encaminhamentos aos especialistas como garantir mais espaço em consultas da atenção especializada, que receberá os pacientes para os quais estas forem realmente necessárias. Isso ainda traz um ganho marginal, em termos do conhecimento por parte dos profissionais atuantes na atenção básica.
A redução da alocação clientelista e indevida de vagas, de crucial importância no caso da vacinação anti-covid, é outro óbice a ser enfrentado, quando o objetivo é reduzir as filas, não contorná-las ou transferi-las a outros locais. Isso geralmente implica em enfrentamento de privilégios, inclusive de agentes políticos e das redes de clientelismo que se criam entre os próprios servidores dos órgãos de saúde. Pode ser uma batalha árdua, na qual manobras sub-reptícias e alegações do tipo “sabe com quem está falando” muitas vezes dominam o cenário.
No caso específico e cotidiano dos serviços de saúde, é fundamental a redução de absenteísmo dos pacientes encaminhados, seja aos especialistas ou mesmo para procedimentos rotineiros, como a vacinação. Nisso, a utilização da telefonia celular é ferramenta eficiente, através da qual usuários podem ser lembrados de seus agendamentos e mesmo da oportunidade de remarcação, caso impedidos de comparecer. As vantagens disso são evidentes, em termos de redução de desperdício de recursos, de ociosidade operacional e de tempos de espera. Assim, a utilização de centrais e sistemas de regulação visa garantir a interoperabilidade de tal sistema, em regime de diálogo entre os gestores municipais e estaduais em determinada região de saúde. Disso deriva a o funcionamento de setores internos de regulação, principalmente em órgãos gestores de maior porte, nos quais estarão disponibilizados dados sobre a capacidade instalada e demanda, além de métricas de permanência, com articulação em rede com o conjunto de serviços para alocação vagas/leitos.
Outro aspecto a ser considerado é o de trabalhar com indicadores de avaliação de processo regulatório. Estes devem ser identificados, dentro de uma lógica que possibilite avaliar a operacionalização do processo de regulação, que passa a ser monitorado, de forma a corresponsabilizar seus diversos atores, além de inclui-los em ciclos de aprendizado e melhoria de processos. O grande efeito, naturalmente, será o de aprimoramento e qualificação das práticas clínicas em toda a rede de atenção à saúde.
Por último, mas não menos importante dentro do rol de medidas ordenadoras e racionalizadoras relativas no processo de atenção à saúde, cabe lembrar a contribuição da atenção básica, aqui considerada em sua acepção completa e não improvisada E isso inclui: (a) a responsabilização, em termos transversais, longitudinais, incidindo sobre pessoas, famílias e comunidade; (b) os processos diferenciados de trabalho, que dizem respeito a equipes multiprofissionais, acompanhamento domiciliar, abordagem epidemiológica, acolhimento e utilização de indicadores de satisfação; (c) as intervenções baseadas em evidências clínicas, epidemiológicas, sociais, financeiras; (d) a atuação proativa, em termos de identificação e vinculo da clientela, além de coordenação do processos de atenção como um todo; (e) a gestão da saúde em termos populacionais. A atribuição relativa à “porta de entrada”, um aspecto central na atenção básica, deve ser enfatizada e seu papel de “guarda” (gate keeper, como se diz no Reino Unido e nos EUA), ou seja, a capacidade de regular a passagem pela mesma, com o bom uso dos instrumentos citados acima, não pode, todavia, se transformar em mecanismo catraca-símile, que deixa passar uns e impede a entrada de outros.
Uma palavra sobre o papel da Enfermagem no processo de regulação, inclusive – e de maneira essencial no caso da vacinação contra o Covid. Ele é essencial e tem que ser de liderança. A carência de pessoal não deve ser desculpa para não fazer, pois a mesma pode ser apenas reflexo do modo como as coisas são (des)organizadas tradicionalmente. De fato, existe atualmente uma tendência mundial no sentido de que a enfermagem desempenhe um papel crítico no avanço da Atenção Primária à Saúde, de acordo com disposições da Organização Mundial da Saúde, além de outros organismos internacionais, configurando práticas já consagradas nos bons sistemas mundiais de saúde, nos quais novos perfis, ditos de “enfermeiros em práticas avançadas” são fundamentais na construção da APS e, em particular, na promoção da saúde, na prevenção de doenças e nos cuidados às populações mais marginalizadas. Além disso, o pessoal da enfermagem é também essencial para atender as necessidades crescentes de saúde da população, em que pese haver lacunas importantes entre os perfis de competência dos profissionais de saúde e as necessidades na APS, em particular na transformação da educação em saúde e na capacitação no planejamento estratégico e gestão de recursos humanos para a saúde. Em uma vacinação em massa, como se faz necessário agora, tais prerrogativas profissionais são essenciais.
A maioria dessas observações se aplica diretamente ao cotidiano dos serviços de saúde, mas nada impede que sejam praticadas, se for o caso, mediante adaptação à situação excepcional que enfrentamos no momento. A primeira de todas as regras é agir com bom senso, ingrediente que é bastante escasso no Brasil de hoje, em que se comanda a saúde como se fosse apenas uma questão logística de prover o “rancho” no quartel ou de fazer a caiação de árvores e meios fios, por pessoal fardado e que “apenas cumpre ordens”. O buraco, neste caso, é bem mais embaixo…
Enfim, acabar com as filas nos serviços de saúde, ou “desnaturalizá-las” em definitivo, não é tarefa simples, mas que dependerá, sempre, de vontade política, de base em fundamentos e evidências, de objetivos claros e definições técnicas coerentes e responsáveis. Sem achismos, sem clientelismo, sem negacionismo, sem “uns mandam outros obedecem”. Isso pode até funcionar nos quartéis, mas não nos serviços de saúde e, principalmente, na sociedade como um todo.
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.