José Castrode Martelli*

Há muito tempo, quando tinha “apenas” 70 anos, portanto no limiar de uma velhice emergente, um amigo recomendou-me um livro que contava a história de um velho professor, Morris Schwartz, diagnosticado como uma doença sem cura e que, encontrando um antigo aluno, passou a reunir-se com ele, semanalmente, conversando sobre a vida nas suas mais variadas facetas, principalmente sobre o seu sentido. A morte do professor sobreveio e o aluno, Albom MIch, escreveu um livro, “A ÚLTIMA GRANDE LIÇÃO – O SENTIDO DA VIDA”, relatando esses encontros.

A leitura desse livro teve uma grande influência na minha vida porque me fez concluir que ela somente tem sentido quando, da forma que Deus permite, é dedicada a fazer o bem a seus semelhantes, direta ou indiretamente, através de atos, palavras ou ações.

Mas o tempo foi passando e o sentido que pretendia dar a minha vida foi esmaecendo. Sobrevieram crises de toda ordem como soe acontecer na vida de todos nós. E eu comecei a colocar em dúvida se meus propósitos estavam realmente sendo concretizados.

E, pior que isso, comecei a questionar se a longevidade que me alcançou até os dias presentes é uma dádiva de Deus ou um castigo para remição de pecados.

Passei a perguntar-me: – será uma dádiva acompanhar, dia após dia, os problemas, os sofrimentos, as tragédias e muitas vezes a morte de amigas e amigos, de colegas de várias fases da vida e de parentes próximos ou distantes?

Principalmente: – por que Deus me poupa e leva pessoas que têm quase toda uma vida pela frente, como tantas vezes têm acontecido?

Veio-me à mente um outro livro, “UM TOQUE NA ESTRELA”, escrito por Benoit Groult, escritora feminista de 85 anos em que descreve a vida com muita lucidez, coragem, poesia, humor, a par de um realismo chocante em que descreve o envelhecimento que estava experimentando na própria pele. A personagem do livro, uma mulher idosa, provavelmente representando a própria autora, termina o livro com o seguinte comentário :

“ Não tenho a menor vontade de assistir ao envelhecimento de meus filhos e nem admitir que meus netos se tornem quinquagenários” e conclui ”a longevidade desarranja a cadeia de gerações”.

Tudo isso me vem à memória nestes dias de pandemia em que malgrado o carinho, atenção e cuidados, quase sempre virtuais, de filhos, parentes e algumas amigas e amigos mais chegados, sinto-me triste e irremediavelmente só.

E da solidão emergem pensamentos que não gostaria de ter, como os que ora trago para esta crônica. Junto a eles as lágrimas que teimam em salpicar a face.

Outro livro, “O FANTASMA SAI DE CENA”, de Philip Holt, também recorda minha vida presente. Trata dos traumas do personagem principal, um senhor de 71 anos que, acometido de câncer da próstata, com todos os problemas físicos e psicológicos daí decorrentes, tenta salvar o restante de sua vida. Muda-se para Nova York em busca de um tratamento revolucionário que promete reverter a incontinência urinária de que fora acometido e lhe devolvesse virilidade perdida como consequência do mal. Apaixonou-se pela, bem mais jovem, proprietária do apartamento que alugara na cidade e passou a viver com ela uma intensa e ardorosa paixão. Mas como não estava preparado para o término natural desse amor impossível, tangido pela velhice inexorável, desencantado consigo mesmo, ele não encontrou forças nem coragem para encarar a dura e cruel realidade. Saiu de cena.

Como contraponto a esse sentimento depressivo o escritor trouxe a lume a lembrança de pessoas que mergulhadas magnificamente no milagre da vida, marcaram a sua presença no mundo, até aos 80/90/100 anos.

Diferentemente do personagem do “Fantasma sai de cena” elas se mantiveram produtivas e inteiradas com a vida, apesar da idade avançada.

Cita Dóris Leasing, Nobel de literatura aos 84 anos. Goethe que escreveu Fausto aos 83. Michelangelo que projetou a cúpula da Basílica de São Pedro aos 90. Picasso, em pleno processo criativo depois dos 90 e o nosso Oscar Niemayer, produtivo até mais de 100 anos.

Pois é. São esses pensamentos que, na falta do que fazer, permeiam minha mente, criando o dilema: dádiva ou castigo e suas consequências entre ânimo ou depressão.

Mas ao lado desses dilemas, o que mais me angustia e quero crer, deve angustiar outras e outros que, como eu, pela vontade de Deus, chegaram à longevidade, é ter amealhado, durante toda a vida uma vasta experiência e conhecimento, mesmo que empírico, e não ter mais oportunidades de transmiti-los.

Dia destes estava a pensar jocosamente sobre o assunto e lembrei-me de que quase todos os idosos são surdos. E o são porque não precisam mais ouvir. Precisariam é que os mais jovens os ouvissem ao invés de se lhes darem conselhos.

Velhos não precisam de conselhos. Precisam de oitiva para que tudo que sabem não se perca.
Uma pequena história se encaixa neste texto, para que fique claro que, em nenhum momento, coloco em dúvida a sapiência dos desígnios de Deus. Se Ele assim quer é porque é melhor para cada um de nós.

Eis a história:
“Arthur Ashe o lendário jogador de Winbledon, estava morrendo de AIDS.
Foi contaminado com sangue infectado durante uma cirurgia cardíaca em 1983.
Uma de suas fãs lhe perguntou:
– Por que Deus teve que escolher você para pôr uma doença tão horrível?
Arthur Ashe respondeu:
– Muitos anos atrás, cerca de 50 milhões de crianças começaram a jogar tênis, e uma delas era eu
Cinco milhões realmente aprenderam a jogar tênis.
500 000mil se tornaram Tenistas profissionais,
50 mil chegaram ao circuito,
5 mil alcançaram Grandslam,
50 delas chegaram a Wimbledon,
4 delas chegaram à semifinal,
2 delas chegaram à final e uma delas era eu.
Quando eu estava comemorando a vitória com a taça na mão, nuca me ocorreu perguntar a Deus
– Por que eu?
Então, agora que estou com dor, como posso perguntar a Deus, – por que eu?”.

É isso. Deus sabe!

Talvez minha angustia nem seja proveniente do dilema dádiva ou castigo, ânimo ou depressão. Talvez ela tenha origem na minha incapacidade de me fazer ouvir, de ser novamente protagonista, de transmitir tudo que amealhei durante décadas e décadas de erros e aprendizado.

Com efeito, aos quarenta anos, na minha ótica, eu sabia tudo. Mantinha uma página no jornal local que sob o título de ECNOMIA & NEGÓCIOS abordava assuntos correlatos com a maior desenvoltura. Dava palestras sobre o que quisessem.

Direito, Economia, Administração eram a minha praia. E sabia tudo.

Apenas, com o passar dos anos, com novos estudos, novas reflexões, novas experiências é que fui me dando conta de que nada sabia. Que tinha muito que aprender, isto sim.

Sempre estudando e procurando me aprimorar, mas sempre percebendo que estava rotundamente enganado em pensar que sabia tudo ou quase tudo. Na realidade hoje eu posso dizer, do alto de 8 décadas de vida, que não sabia nada ou quase nada.

Mas aprendi muito e continuo aprendendo, mas sei que tenho muito pra dar em conhecimento, experiência e até em protagonismo.

Mas quem quer isso de um octogenário? Ninguém. Perceberam a minha angustia?

Todos, como eu, naquela faixa etária em que pensam que sabem tudo, não têm tempo para ouvir. Não têm tempo para haurir. Não têm tempo para aproveitar o que os idosos, a duras penas e com muito sacrifício, aprenderam.

Infelizmente, vim a saber somente agora, que quando jovem, deveria ter dado mais ouvido e atenção aos idosos, inclusive e, principalmente, aos pais, enquanto vivos. Talvez não tivesse errado tanto.

Eis uma boa receita. Repito : – por que Deus faz quase todos os idosos surdos? Porque eles não precisam mais ouvir. Têm é que ser ouvidos.

Advogado e professor