Roberto Bueno*
Recentemente viemos experimentando diversas interdições públicas promovidas pela ultradireita conservadora autoritária brasileira no sentido de tentar estabelecer mobilização pública suficiente para que fossem proibidas exposições e mostras contrárias aos seus valores religiosos intolerantes muito particulares. Um dos argumentos levantados por Paula Cassol, a coordenadora estadual do MBL no RS em cuja capital vinha tendo lugar exposição promovida pelo Banco Santander, mobilizou setores da sociedade contra a exposição que, aliás, não visitou. Segundo Cassol, o seu movimento “não avalia” que o QueerMuseu estivesse a realizar algum tipo de arte, e que crianças não poderiam ter acesso a ela. O que em nenhum caso lhe ocorreu é que as leituras sobre o que seja o conteúdo da arte e a decisão sobre o que deve ou não ser visto por adultos ou crianças não é patrimônio pertencente a qualquer dos grupos que interagem em sociedade.
Em nenhum momento uma sociedade democrática pode colocar em questão a vedação de manifestação artística a partir da censura de um grupo específico, mesmo que sejam genuínas e sinceras as suas crenças de que outras manifestações estejam a macular alguns de seus valores, e talvez um dos mais claros exemplos contemporâneos a este respeito se encontre no caso francês do Charlie Habdo. A posição de Cassol e de seu MBL que vem se expandindo perigosamente desconhece a aguda ponderação do argumento dworkiniano de que “[…] la sociedad no tiene derecho a actuar, por más inmoral que sea la práctica, a menos que el daño que amenaza a una institución sea demostrable e inminente, no simplemente conjetural”.
Insofismavelmente, há limites de tolerância, pois, como também é reconhecido pelo texto de Dworkin, há “[…] diferencia entre posiciones que debemos respetar, aun cuando las consideremos equivocadas, y posiciones que no es necesario respetar porque ofenden alguna regla o razonamiento moral básico”. Contudo, em nenhum caso há permissão para estabelecer a censura e muito menos movimentos de pública persecução de manifestações artísticas, tão tipicamente adotadas em Estados totalitários como foi o caso da Alemanha Nacional-Socialista em que a arte foi objeto da tentativa de purificação, e oportunamente cabe lembrar daqueles conteúdos então classificados como arte degenerada. Neste sentido é preciso reconhecer que as posições deste grupo de indivíduos estão na mesma linha da adotada pelos censores nacional-socialistas, dispostos a criar uma arte pura, pautados tão somente por sua suposta excelência em todas as matérias, e em juízos artísticos também, individualmente concebidos como se a luz os habitasse com exclusividade neste tão longo Universo, em amplo desconhecimento de que justamente um dos problemas centrais da vida moral “[…] consiste en sostener que tal o cual posición cae de uno o del otro lado de esta línea decisiva”, e neste particular a modéstia e a humildade de propósitos costuma redundar em benefícios democrático-libertários que outras opções absolutistas não comportam.
O argumento contrário à liberdade de expressão e acesso a informação cultural é de que a sociedade teria o direito de adotar medidas autoprotetoras. Para a análise desta incrível polêmica posta no Brasil neste primeiro quarto de século talvez precisássemos retroceder à célebre disputa jusfilosófica travada ainda na década de 1960 na Inglaterra, que envolveu Lord Devlin e Herbert Hart, centrada na moralidade e no homossexualismo em particular, sobre a qual a leitura de Dworkin afirma que qualquer concepção sobre a moralidade que se possa manter “[…] no da a la sociedad el derecho de prohibir las prácticas homosexuales. No podemos mantener cada hábito o costumbre que nos gusta mediante el recurso de encarcelar a quienes nos quieran preservarlos”.
A polêmica travada no Brasil neste mês de setembro de 2017 tem em sua essência não a exposição artística em si, mas o que de visão moral ela carrega. O que está em causa é a exploração de seu viés moral, e neste sentido é que se aplica o comentário de Dworkin que desautoriza às sociedades promover a persecução de práticas que desgostem alguns de seus membros tão só pelo fato de que nesta conta lhes caia. Indubitavelmente, a opção contrária à sugerida por Dworkin aponta para o perigosíssimo caminho da censura à arte, que carrega em seu âmago a potencialmente totalitária crença de que apenas algumas visões de mundo são meritórias e recheadas das virtudes que a iluminação de seus próceres propicia, e que a própria arte, portanto, não deveria expor outras visões de mundo concorrentes e que estimulem a pensar horizontes tão diversos e ameaçadores aoestablishment.
É preciso considerar que a sociedade contemporânea está configurada de forma bastante heterogênea, absolutamente plural e que os democratas estão convencidos de que proteger as diferentes visões de mundo dos diferentes coletivos é um grande valor cultivado ao longo dos tempos e que desembocou na modernidade. Isto encontra apoio na teoria dworkiniana de que não se pode considerar moralmente inferior a qualquer tipo de homens com base em alguma característica física, racial ou seja de algum outro tipo que ele não poderia deixar de ter, o que deve ser ainda devidamente ampliado para outro aspecto, vale dizer, concernente à moralidade.
Enquanto estes pequenos grupos de homens pequenos adota como preocupação supostas práticas indecentes, eles não voltam os seus olhos para a indecência-mor, a saber, a de que milhões de trabalhadores, homens e mulheres de todas as idades e crenças, sentem mais real das dores, palpáveis através da defenestração de seus direitos sociais, da saúde à previdência. O direito à liberdade de informação em sentido amplo, incluindo o de formação artístico-cultural, é capaz de comprometer a alimentação básica para a descrição de novos mundos, e como se já não bastasse a censura imposta pelo capital aos meios de comunicação, eis que grupos autoritário-conservadores de ultradireita foram sendo constituídos e ganhando espaços para promover ainda mais o estreitamento de horizontes possíveis.
O agravamento do autoritarismo está curso através de forças conservadoras de ultradireita que promovem os valores do arbítrio e da força sem constrangimento, sob constrangedores equívocos históricos, e vários, a ponto de tergiversar sobre os mais elementares fatos da realidade da vida. Trata-se de conservadorismo autoritário capaz de identificar a pornografia no vazio e empreender sérios ataques à moralidade pública a partir de concepções privadas. A real face da pornografia e da imoralidade insustentável e inaceitável é a face da fome, da miséria e do abandono, da morte sem assistência e da negação de auxílio-médico, mas também de todos os demais tipos por parte de um Estado que é levado a distanciar-se de suas funções básicas. A ultradireita conservadora autoritária insere-se dentre as forças que empreendem esforços para a manutenção da situação hipócrita que leva milhares de mulheres à prática de monstruosos abortos clandestinos. Enquanto isto a seleta turba de moralistas se incomoda com a censura artística por força de depravação. Convém pensar, demorada e conscienciosamente, onde está, realmente, a depravação e a pornografia merecedora de ataques neste mundo? Na escolha de corpos e prazeres ou na miséria a que tantos homens e mulheres são submetidos? A escolha do que fazer, como sempre, é toda nossa. (fim).
*Professor da Graduação em Relações Internacionais da UFU. Professor da Pós-Graduação em Direito da UnB.
Eu sempre q olho no espelho ele me pergunta: quem é VC? E eu concluo: as minha escolhas…sempre as escolhas.