Antônio Pereira da Silva*

O circo do Bebê estava armado nos fundos do Hotel do Comércio que ficava na rua Vigário Dantas. Era um cirquinho acanhado, de crianças, cujo trapezista era o Genésio, filho do João Pequeno, e o palhaço era o moleque Sebastião Prata, que também cantava. Lá um dia, o Bastiãozinho resolveu fazer um número de trapézio. Fez um teste e ficaram maravilhados. Bastiãozinho enganchava os dedões dos pés na barra do trapézio e ficava dependurado tranqüilamente, de cabeça para baixo; nem a movimentação que imprimiam na peça modificava a sua tranquilidade. O trapézio era montado sobre mastros que tinham servido para levantar as bandeiras de Santo Antônio, São Pedro e São João nos quintais da vizinhança. Erguidos paralelamente, puseram-lhes por cima uma forte trave bem amarrada. Daí pendiam umas carretilhas que presas às cordas de bacalhau, tanto davam segurança ao trapézio quanto permitiam movimentá-lo para baixo e para cima. O trapézio era um cano amarrado nessas cordas. À hora do espetáculo, lá estava o Bastiãozinho preparado para a estréia. Olhou o trapézio, achou que estava baixo e não daria toda a emoção que queria despertar no público. Pediu para o Bebê suspender mais.
– Olha, negrinho. Você vai trabalhar é nessa altura mesmo. Não quero me meter em dificuldades…
Bastiãozinho fez um trejeito aceitando de má vontade e trepou mastro acima. Agarrou-se ao trapézio e foi balançando, balançando até pegar um bom movimento. Regulado o vai-vem, dobrou o corpo, enfiou as pernas sobre as mãos, largou estas e ficou balançando pelas dobras do joelho. Deu novos impulsos ao corpo para recuperar o movimento. Ao ponto, novamente se dobrou, agarrou o trapézio com as mãos e deixou as pernas escorregarem até os dedões chegarem à barra. Largou das mãos. O público entusiasmado explodiu em palmas. Bastiãozinho balançava pra lá e pra cá preso apenas pelos dedões dos pés. Alguns tinham a boca aberta de espanto. A orquestra que acompanhava o número com música lenta dobrou o andamento e passou a tocar uma música arrebatadora. A orquestra constituía-se de uma gaita, um cavaquinho e um tamborete que fazia as vezes de tambor. O maestro era um tal Vavá. Entusiasmado com o sucesso, Bastiãozinho resolveu pendurar-se num só dedão. Foi soltar um pé e despencar mergulhando no vazio. O povo assustou-se. Esborrachou-se em cima do Totó (um sujeito que vendia revistas) que não teve tempo de desvencilhar-se. Enquanto o Totó reclamava da falta de proteção para o público, Bastiãozinho estava imóvel, só os olhos muito abertos, o branco dos olhos muito mais branco ainda. Pequena era a mocinha filha dos donos do Hotel do Comércio. De coração extremamente sensível, foi ela quem socorreu o artista. Correu à cozinha e trouxe um copo d’água com sal que pôs na boca do trapezista. Daí a pouco, Bastiãozinho começou a piscar e a choramingar. Pequena acariciava-lhe a carapinha e conversava meigamente com ele. Não demorou já estava de pé. Assistiu o resto do espetáculo e, ao final, ainda cantou sua canção preferida:
“Aribu desceu do céu / Cum fama de dançadô. / Aribu entrô no baile / Tirô dama e não dançô! / Dança, aribu! – Eu num sei não. / Dança, aribu! – Num sô dotô.”
Nunca mais Grande Otelo quis mexer com trapézio. (Fontes: Benedikto).

*Jornalista e escritor