Marília Alves Cunha*

“A polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções”. (Sérgio Buarque de Holanda).

A impressão é que estamos nos despindo do disfarce de homem cordial e polido. E, como nunca, partimos para a queda de braço e até o puro exercício da ignorância em tempos funestos, quando poderes mais altos se levantam, conspiram e traem a machucada alma brasileira.
Culpa nossa por estarmos agora desfilando mágoas, ódios, ressentimentos, irracionalidades, radicalizações pelas redes sociais e até em embates “tête à tête”? Culpa nossa por estarmos agora qual carrascos, clamando por castigos dos infernos?
De certo modo é, de outro modo não é… Somos, infelizmente, um povo politicamente analfabeto e mal educado. Nossos exemplos são ruins, nossas escolas estão ensinando cada vez menos, nossa cultura de “dar um jeitinho” e ser “esperto” grudou na pele, nosso dia a dia se traduz em preocupações individualistas e sonhamos muito. Sonhamos com uma vida melhor, com um futuro melhor para nossos filhos, sonhamos até com o quase impossível, como ganhar na Megasena e resolver a vida num golpe de sorte. Somos pouco exigentes. Custamos muito a aprender. Continuamos, anos a fio, votando em gente que não merece nos representar, anos a fio vendo altos cargos serem preenchidos por incompetentes, beneficiados pelo compadrismo e pela exigência do aparelhamento estatal a garantir projetos de poder que resultaram em vasta rede de corrupção. E resolvemos as coisas sérias na mesa do boteco, quando alguns goles a mais exaltam os ânimos e nos dispomos a solucionar os problemas mundiais e nacionais. E tudo acaba em ressaca, Engov e decepção. Nossa fúria esbraveja nas redes sociais, a gritar contra este estado de perene insatisfação a que somos submetidos. Estado de pura depressão moral nos ataca quando verificamos que, apesar do nosso grito, tudo está como antes no quartel de Abrantes.
Mas as coisas estão mudando, nasce uma reação para melhor, apesar da transição não ser nada fácil e ás vezes revestir-se de agressividade. Da insensibilidade e desinteresse que demonstramos anos a fio com temas de importância e até vitais para a cidadania, passamos a outro estágio. Estamos tirando a máscara de homem cordial e mostrando, a qualquer preço, que não podemos ser felizes, a continuar a bagunça de agora… E temos amplas razões para este despertar agoniado. Os fatos nos levam a isto. A nossa cordialidade com os políticos foi para o brejo. Que me perdoem as raras exceções, mas atualmente os políticos brasileiros mal podem sair às ruas, sem sofrer apupos e agressões. Fico aqui maquinando: como vão fazer campanha eleitoral, aquela velha campanha do abraço, do tapinha nas costas, do cafezinho amigo no bar da esquina? Talvez resolvam a situação com uma reforma política que torne mais leve sua jornada. Uma reforma política que já nasça em “adiantado estado de decomposição” e que não resolva nenhum sério ou grave problema. Não vejo nenhum partido apresentar algo digerível, um plano de governo confiável e maduro que possa pelo menos minorar a ruína em que está se transformando a pátria amada. A classe política está sendo guilhotinada moralmente, num lance de indignação e decepção dos brasileiros.
Nenhum resquício de cordialidade sobreviveu quando a polícia matou 10 bandidos que assaltavam residências em bairros nobres de São Paulo e explodiam caixas eletrônicos. As pessoas reagiram à notícia, aplaudindo a polícia e torcendo em desfavor de marginais. A santa resignação começa a dar lugar a uma necessidade de exigir proteção, de exigir o lugar do Estado no controle da nossa segurança, nem que seja à custa do “dente por dente”.
Um homem ejaculou no pescoço da passageira de um ônibus, no Rio de Janeiro. Estes ataques às mulheres acontecem rotineiramente, em várias situações. Só que de repente alguma resolve dizer “não” e mostra a sua repulsa ao ato. O brasileiro bonzinho não perdoou. Soltou seu grito de guerra contra o ejaculador, contra o juiz que o livrou das grades, imprecou maciçamente contra as autoridades que deixam nas ruas reincidentes, ameaçadores da paz social. Pena de morte, prisão perpétua, fogueira para o criminoso. Pô!
Notícias que também andam fazendo estragos na nossa sensibilidade são as relacionadas às Olimpíadas que aconteceram na Cidade (ex) Maravilhosa. Os brasileiros se alimentaram de um grande sonho. Disseram até que íamos nos livrar “ad aeternum” do nosso famoso complexo de “vira latas”. A emoção tomou conta do país e muitos brasileiros, embalados pelo sonho, se apresentaram para trabalhar como voluntários, graciosamente, na ânsia de participar e ver o país brilhar diante da comunidade internacional. Agora irrompe o pesadelo, com o Rio de Janeiro sofrendo penúria total. A cidade Olímpica, construída com muito dinheiro e muita propina encontra-se em ritmo de completo desgaste, sem aproveitamento e manutenção. Os políticos e empresários da época que engendraram o desastre, se mandaram do Brasil ou estão pagando a conta de suas desonestidades. Até a eleição do Brasil como sede da Olimpíada foi comprada e das falsas promessas de geração de benefícios à imagem do Brasil, restou a descida do pano: um teatro de falsidades e desonestidades que assombram não só o país como o resto do mundo. Vexame total. E para arrematar com chave de ouro, ainda temos de suportar o espetáculo de arrogância, desonestidade, imbecilidade dos Joesleys da vida… Dá para aguentar não! Indignação é preciso, pois!
E aí? Estaremos tirando a máscara e aprendendo que não podemos ficar bonzinhos demais, cegos demais? Será possível preservar nossas emoções e nossas sensibilidades, mesmo que o país naufrague na impunidade, na corrupção, na corrosão moral, social, cultural? O Brasil tem que melhorar nem que seja “à fórceps”…Já chegamos ao fundo do poço, não temos saída. Basta destas situações que nos predispõem ao antagonismo, à radicalização exacerbada e até às irracionalidades. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, queremos apenas um país melhor e mais limpo para viver…

*Educadora e escritora