Dr. Flávio Goulart*

A “gripezinha” continua matando gente, aos montes, e os profissionais de saúde, particularmente da Enfermagem, que mantêm contato mais próximo com os pacientes nos hospitais e ambulatórios, estão sofrendo horrores com isso, inclusive com muitas mortes. Acabo de ler o resultado de uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas sobre os riscos à saúde que a atual pandemia tem levado às enfermeiras e enfermeiros no Brasil. É de arrepiar. Apesar disso, um desses pleonásticos bolso-loucos ainda foi capaz de agredi-los diretamente numa manifestação em Brasília. Coisas deste país em des-governo. Leia mais.
O material de que disponho, contido no link mostrado ao final, considera que o isolamento social instaurado há cerca de dois meses em todo o país nos obriga a pensar nos(as) profissionais que atuam face a face com os cidadãos, a “linha de frente”, sendo notório o impacto do Coronavírus em suas vidas, nas dinâmicas de trabalho e na maneira como interagem com os cidadãos. O Conselho Federal de Enfermagem alerta que já morreram no Brasil 137 profissionais da área em decorrência da pandemia e os números globais sistematizados até abril totalizavam 260 mortes no mundo inteiro, o que faz do Brasil, com uma proporção de mais de 50% das mortes de todo o planeta nesta categoria, mais um (triste) recordista mundial. Ao mesmo tempo, não deixa de ser expressivo o número de médicos mortos, totalizando 113 no país até o momento, além dos 40 agentes comunitários e de endemia mortos.
O Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV nos traz os dados extraídos de uma pesquisa online realizada com 1.456 profissionais da saúde pública no Brasil, visando a compreensão da percepção destes profissionais sobre os impactos da crise em seu trabalho, bem-estar e modo de agir cotidianamente.
A primeira pergunta foi: Você tem medo do Coronavírus? Nada menos do que 88,7% alegaram ter medo, sim. Desagregados por região, os dados mostram que isso vale em todas as regiões do país, mas que na região Norte é ainda maior, chegando a 92,3%. Vale mencionar também que mais da metade (55,1%) declarou que conhece algum(a) companheiro(a) que está infectado com Covid-19 ou com suspeita.
Quando questionados se sentiam-se preparados para lidar com o Coronavirus, apenas 14,2% dos profissionais responderam que sim e 20,74% ainda não sabem dizer.
Quanto aos materiais adequados para trabalhar diariamente com segurança, garantindo a sua e a dos cidadãos, apenas 32,9% do total de respondentes do questionário acredita que os recebeu.
Na questão da capacitação para lidar como problema atual 21,9% do total de respondentes afirma ter participado de algum treinamento para lidar com o coronavírus ou de ter recebido diretrizes sobre como atuar.
Questionados se a crise afetou sua dinâmica de trabalho, cerca de 75% dos respondentes disseram que sim, estando entre as principais mudanças apontadas questões ligadas a fluxo de trabalho; organização das rotinas e procedimentos; mudança de prioridades de atendimento; alteração de regime de trabalho (horários de atividades, plantões, férias e escalas); introdução de tecnologias de informação no trabalho; introdução de atividades de telemedicina; introdução de novas práticas de trabalho.
Neste último aspecto, enquanto os profissionais da média e alta complexidade apontam mudanças de trabalho relativas a aumento de demanda e introdução de novos procedimentos de proteção; os profissionais da atenção primária à saúde apontam que as mudanças dizem respeito a alterações na atuação da UBS, mudança de prioridades e introdução de novas práticas de trabalho.
Com relação às mudanças que a crise provocou nas interações com os usuários dos serviços, 88% dos profissionais afirmaram que houve alterações consideráveis. Nas interações com usuários, o que mais se destaca diz respeito ao distanciamento físico entre profissionais e usuários, do que decorreram mudanças de diminuição dos contatos, a redução nos toques físicos, o aumento da velocidade das consultas ou encontros e a adoção de tecnologias alternativas para manter contato.
Sobre a percepção de como sentem que os governos (União, Estado e municípios) estão apoiando suas ações, em sua grande maioria, não se sentem apoiados, com algumas diferenças entre os níveis da federação.
A pesquisa se detém, também, sobre as possíveis recomendações que os gestores deveriam assumir para melhorar a atuação dos profissionais perante a crise, garantindo a eles recursos, informações e proteção necessárias dada a importância de seu trabalho neste momento, conforme mostrado abaixo:
• Distribuição de EPIs de qualidade para todos os profissionais dos diferentes níveis de atenção.
• Distribuição massiva de testes rápidos tanto para monitoramento da população como, acima de tudo, dos profissionais de saúde.
• Organização oficial e disseminação de informações sobre novos fluxos de trabalho, procedimentos, práticas de proteção, etc. frente à crise.
• Reorganização dos serviços da atenção primária, direcionando-os de forma clara para atuarem durante a pandemia com a devida e necessária proteção.
• Atenção especial aos ACS e ACE, tanto em relação às funções que podem assumir na pandemia, como nos cuidados que devem receber em termos de informações, treinamento e equipamentos. Estes são atualmente os profissionais com maior percepção de vulnerabilidade, segundo os dados da pesquisa.
• Formação e treinamento adequados para que os profissionais estejam mais preparados para enfrentar a crise, utilizando tecnologias simples, como vídeos com transmissão online, infográficos ou outros materiais de comunicação simples e assertiva que chegue na ponta rapidamente.
• Construção de rede de comunicação entre a secretaria de saúde e profissionais (como rede de whatsapp) para tirar dúvidas, fazer comunicação rápida e repassar informações oficiais.
• Distribuição de material informativo oficial para profissionais repassarem para população e combater as fake news.
• Realização de campanhas de valorização das profissionais da saúde para sensibilizar a população sobre sua importância e demonstrar o suporte que possuem por parte dos governos.
• Viabilizar e incentivar a articulação intersetorial pelos profissionais da linha de frente, por meio de fluxos de encaminhamentos definidos e repasse de informações sobre os serviços de emergência.
• Construção de políticas de suporte emocional e psicológico para os profissionais da ponta – por exemplo disponibilizando os psicólogos da saúde para fazerem acompanhamento destes profissionais.
PS. A figura que ilustra este post é de ANA NERY, símbolo da enfermagem brasileira.

Momento cultural…

Albert Camus, escritor de língua francesa, nasceu na Argélia, em 1913  (morreu em 1960), filho de família pobre. Ele era um “pied-noir”, na preconceituosa expressão utilizada pela elite de então. Teve uma vida movimentada, seja como escritor, jornalista, filósofo, divulgador de ideias e, principalmente, militante, embora da variedade cética. Um de seus livros mais famosos, A Peste, narra o decurso de uma epidemia em Orã, na Argélia, onde ratos mortos são encontrados de forma progressiva nas ruas e nas casas, principalmente entre as famílias mais pobres, não por acaso, árabes. As autoridades decretaram um “estado de praga”, com os muros da cidade sendo fechados e se impondo uma quarentena à população. Buscar em tal romance um paralelo com a situação atual da pandemia de coronavírus é algo irresistível…

* Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.