Marília Alves Cunha*

Quando meu pai faleceu, há 49 anos, eu o achava velhinho, não obstante o olhar forte e atrevido, a inteligência arguta, a lucidez e a postura altiva e elegante. Hoje me sinto estranha perante aquela sensação: sou mais idosa que ele à época de sua morte e nem por isto me sinto uma velhinha. Os seres humanos são assim. Vão postergando como podem a velhice, não enxergando com olhos muito claros a própria e desta maneira postergam também a inexorável finitude.
Um câncer o abateu. Época difícil. A palavra era proibida, a doença apelidada: trem ruim, aquilo, coisa maligna. Contagiosa para muitos. O diagnóstico nunca declarado ao doente e o tratamento quase inócuo. Analgésicos e alguns frascos garimpados de curandeiros, milagreiros, nos quais se depositava toda a fé, compunham o arsenal da batalha. Diante de uma sentença de morte toda tentativa era válida, qualquer nesga de esperança alívio para a impotência e a dor.
Aos olhos dos filhos os pais geralmente são vistos como heróis. O meu nunca me pareceu um. Desde cedo aprendi a conhecer suas qualidades e imperfeições, todas muito gritantes para não serem reconhecidas. Era corajoso, de uma coragem fria que às vezes beirava a insensatez e nos fazia temer por sua integridade. Bravura não faltava e se estampava em olhos verdes faiscantes e profundos, que diziam sim ou não, excluídas as palavras. Gestos fortes, mãos ossudas e expressivas, dedo anular enfeitado pelo anel de advogado, capaz de apontar acusadoramente um réu no tribunal do júri ou de dançar divertido, cadenciando o ritmo de uma canção numa festa popular. Mãos compridas, incoerentes, a um tempo impacientes e nervosas, a outro, expressão de ternura.
Quando descobriu que eu fumava, ofereceu-me um charuto e disse –“Vai fumar de verdade”. Quase morri, fiquei enjoada por uns três dias. Mas não desisti do vício, como era seu intento. Desistiu ele de me consertar. Fumamos muitos cigarros juntos, para espanto de uma sociedade que, à época, considerava o fato uma coisa desrespeitosa. Gostava de uma cervejinha e das minhas melhores lembranças constam as reuniões nas mesinhas dos bares, com os muitos amigos, petiscos de ovos coloridos e tremoços, o homem bonito encantando a todos com seu charme e sua prosa rica e fácil.
Advogado emérito prestava serviços profissionais em várias localidades. Viajava de taxi ou de jardineira, balançando o esqueleto por estradas poeirentas, terno elegante protegido por um guarda pó, jaleco que se usava para resguardar a vestimenta. Voltava sempre com alguma história para contar, de como enfrentou os inimigos com sua argúcia e sua oratória, de como sobreviveu a desastres iminentes ou de como se lavou nas águas do rio depois de ser alvo de um jorro de vômito, expelido pelo nenê ao lado, que se fartara de leite no peito da mãe, ao balanço incômodo da jardineira. Tinha medo dele, às vezes. Meu coração quase saiu pela boca quando fui flagrada com o primeiro namoradinho, mãos dadas e ar apaixonado. O semblante reprovador e a descompostura após, ainda hoje arrepiam. Mas quando no meio da noite sentia suas mãos ajeitando o meu cobertor que teimava em escorrer e o beijo dado na fronte com um carinho sem fim, fingia que estava dormindo e ficava estática, como se quisesse que o tempo parasse naquele instante e que o gesto meigo não se perdesse jamais.
Passados muitos anos a sua ausência ainda incomoda, fragiliza. Com a compreensão maior que se adquire com o correr dos anos, aumentam o orgulho e a admiração pela pessoa marcante e admirável que foi meu pai. E a saudade dele, Ranulpho Cunha, sempre dói em mim… Sempre.

*Educadora e escritora