Cesar Vanucci*

“Pioneiras do futebol feminino, elas enfrentaram com
galhardia e coragem os preconceitos talibanistas de sua época”.
(Antônio Luiz da Costa, educador, sobre a luta pelos direitos
femininos sustentada nos anos 50 por mulheres de Araguari)

Refestelado em confortável poltrona, balde de pipoca ao alcance das mãos, atenção fixada na telinha repleta de imagens e sons, este desajeitado escriba deleita-se com as evoluções coreográficas das atletas da seleção brasileira que disputa na França a Copa Mundial de Futebol Feminino. Da memória velha de guerra emergem, de súbito, impetuosamente, imagens marcantes de acontecências registradas no século passado, anos 50.

Revejo, nostálgico, as “ousadas” ações vanguardeiras das meninas de Araguari no campo de futebol do principal clube da cidade. Essas “garotas” foram, saibam todos, senhores e senhoras, as introdutoras da prática futebolística feminina no Brasil. Chefe de redação do diário de maior circulação na região do Triângulo Mineiro, o desassombrado, já extinto, “Correio Católico” (12 mil assinantes na época), fui convidado em determinada ocasião, por amigo dileto, de saudosa memória, o brilhante jornalista Mário Nunes, a assistir, em Araguari, uma partida de futebol de características inéditas, com fitos beneficentes. Os times em campo eram constituídos de moças na “flor da idade”, de diferentes segmentos sociais. Envergavam calções, calçavam chuteiras, naquela época também chamadas de “bicancas”. Algumas protegiam a cabeça, mode que ajeitar cacheados cabelos, com gorros. Seja lembrado que não poucos atletas do futebol masculino costumavam fazer o mesmo.

Minha primeira reação diante dos lances inusitados capturados pelo olhar foi, obviamente, de baita surpresa. A surpresa acabou cedendo lugar a forte sentimento de admiração e solidariedade. Senti-me comovido com as cenas das “minas” fervorosamente convictas da legitimidade do papel que lhes tocava desempenhar, naquele preciso instante, no enredo da vida comunitária. Percebi que iriam precisar de palavras de encorajamento e aplauso naquele seu afã de quebrar tabus e desafiar inclementes regras machistas. “Botando pra jambrar” (como se costumava dizer em tempos de antanho), elas também puserem à mostra, de quebra, insuspeitáveis habilidades no “trato com a pelota”. Cuidei de acompanhar de perto, por razoável lapso de tempo, até que o bom-senso conseguisse finalmente se impor, a tormentosa polemica surgida, então, a respeito da legitimidade de as mulheres virem a jogar futebol. Fomentada por flamejante preconceito, a controvérsia acabou desembocando em raivosas vociferações por parte do falso moralismo entocaiado. O exagero na condenação da prática conduziu aguerridos “adeptos” do indissolúvel “Transanteontem Futebol Clube”, sempre a postos na contestação dos avanços civilizatórios, à redescoberta, em carcomida legislação dos tempos autoritários do Estado Novo, de um dispositivo contendo taxativa proibição ao futebol feminino, com previsão de severa penalidade aos infratores, ora, veja, pois!… O ânimo das araguarinas não arrefeceu. O valoroso time das jovens manteve-se inabalável na determinação de enfrentar a intolerância talibanista que se valia de mil artifícios para cercear-lhes a atuação. Ao fim e ao cabo, as pioneiras sagraram-se vitoriosas em seus propósitos. Conseguiram implantar uma barricada a mais na defesa dos direitos da mulher e da cidadania.

As “garotas de Araguari” são, na atualidade, quase todas elas, vovós setentonas. Orgulham-se muitíssimo, pelo que se sabe, dos gols de placa marcados. Dentro e fora do campo.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)