Cesar Vanucci *

“Uma tragédia anunciada!”
(Walter Neves, antropólogo)

Na roda do papo matinal na feira, a Almerinda do sacolão traduz a sensação do desalento popular reinante: “Tá danado, gente boa. Tá meio demais da conta, vocês não acham?” O Elesbão churrasqueiro é o primeiro a concordar. Com seu vozeirão de inconfundível sotaque baiano aduz: “Tem toda razão. É uma montoeira de coisa desagradável junta. Tudo pipocando conjuntamente!”

Na espichada da conversa, componentes do grupo, feirantes e fregueses, vão botando pra fora referências desconcertantes, mais do que isso, desagradáveis, das vivências do povão no dia a dia. Jorram manifestações. Os inesgotáveis escândalos com a grana pública. O notório, azucrinante, despreparo de boa parte dos aspirantes a cargos importantes nas eleições que se avizinham. A estagnação econômica, despropositada, insuportável, quando se tem sob mira as prodigiosas potencialidades oferecidas pelo país mais bem aquinhoado deste planeta azul na partilha de recursos naturais em condições de produzir riqueza social em proveito de toda a humanidade. A impactante inoperância do governo mais impopular da história republicana. A multidão incalculável de desempregados e as legiões de patrícios forçados a fazer “bicos” para sobreviver. Além disso, a acumulação assustadora, em tudo quanto é canto, de obras inacabadas importantes, de projetos fundamentais nos setores da infraestrutura que não saem do papel. Tudo isso conspirando estrondosamente contra a necessária, urgente e inadiável retomada do desenvolvimento. Os desestímulos e desencorajamentos às ações de empreendedores capacitados, gente ansiosa pelo ingresso na cena política de uma liderança nacional dotada de carisma, popularidade e poder de iniciativa para galvanizar as atenções da Nação inteira no sentido da invasão do futuro. A progressiva e delituosa desnacionalização de ativos valiosos do patrimônio nacional.

Mais ainda: a violência urbana solta e as diligências oficiais, de inocultável incompetência, volta e meia trombeteadas para se “combater” as organizações criminosas; a exorbitância nos gastos públicos, a começar pelos altíssimos salários e respectivos penduricalhos que compõem os holerites do exército de agentes públicos remunerados acima do teto fixado pela Constituição; as incongruências detectadas com constância, em deliberações legislativas e judiciais.

No desfile das situações cotidianas tormentosas despejadas na conversa solta de rua encaixou-se, também, a recente e estranha manipulação das redes sociais, com a propagação aos quatro ventos de uma “nova greve dos caminhoneiros”. O anúncio, de suspeitosa procedência, provocou mais uma alucinante corrida aos postos. E, na sequência, desprotegidos consumidores viram-se “agraciados” com novas e significativas majorações nos preços da gasolina, do álcool etecetera e tal…

Dona Almerinda do sacolão tem razão. “Tá danado, meio demais da conta”. Já não transbordassem motivos para as aflições da sociedade, com essa avalancha de episódios geradores de assombro e indignação em doses mastodônticas, eis que o horizonte se vê, inesperadamente toldado por essa estocada brutal do destino, reduzindo fatalisticamente a cinzas um pedaço precioso de nossa história É oportuno anotar o que diz o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, considerado o “pai de Luzia” – o fóssil humano mais antigo já encontrado em escavações pré-históricas das Américas, localizado em Lagoa Santa, Minas Gerais, com idade provável de 12 mil anos, uma das relíquias perdidas no incêndio do Museu Nacional localizado na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro. Sua reação é de molde a deixar estarrecidas – “ juntas, conjuntamente” como diria o Elesbão do churrasco – todas as estátuas de pedra-sabão esculpidas por Aleijadinho existentes no museu ao ar livre em Congonhas do Campo: “Uma tragédia anunciada. O poder público abandonou completamente o Museu há décadas.”

A constatação, aliás, é de que não se trata apenas de uma tragédia para o Brasil. No entender dos especialistas, o desaparecimento do Museu representa uma tragédia para a humanidade. A inconcebível ausência de água da meia dúzia de hidrantes no local do sinistro para o combate às chamas como denunciado pelo Corpo de Bombeiros, as labaredas fatídicas do descaso governamental criminoso com relação ao patrimônio de riquezas guardado no Museu reduziram a cinzas 20 milhões de peças e 200 anos de referências históricas de incalculável significado para a cultura.

Em sua apreciada coluna, Élio Gáspari reporta-se ao desastre do Museu Nacional e a outras ocorrências de passado recente em instituições culturais igualmente desguarnecidas de um mínimo de salvaguardas mínimas para enfrentamento de incêndios. “Quem viu as primeiras reações dos hierarcas da burocracia culturais diante da tragédia da Quinta da Boa Vista – assinala – teve o sofrimento adicional de ser tratado como cretino. O incêndio foi um acidente previsível, mas ainda assim, foi um acidente. A estupidificação oferecida pelos hierarcas foi entulhação deliberada.”

A entulhação, pelo que se extrai das informações a respeito do assunto, veiculadas por fontes qualificadas, foi ampla, geral, irrestrita. E, também, bastante irresponsável. Os órgãos encarregados da preservação dos bens culturais brasileiros viram-se pilhados em flagrante. Não mais conseguem esconder da coletividade a precariedade dos meios disponíveis à execução das tarefas elementares que lhes tocam institucionalmente promover. É o caso até de admitir, como, por sinal faz outro participante da roda de conversa na feira: “Tamos n’água!”

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)