Ana Maria Coelho Carvalho*

Em suas andanças pelo mundo, há alguns anos atrás, minha filha foi parar no sul da Tailândia, no monastério budista Suanmok, situado em uma floresta densa com um lago de águas quentes. Tão isolado, que a última etapa da sua viagem foi feita na garupa de uma motoquinha.
Ela foi fazer um retiro de dez dias de meditação em silêncio, chamado Vitassana. O ritual diário era mais ao menos assim: os alunos levantavam às 4:30h da madrugada e deitavam às 21h; mulheres em um lado do monastério e os homens do outro, cada um no seu quartinho; durante o dia, apenas duas refeições: sopa de arroz no café da manhã e legumes e arroz no almoço (nada de carne, é pecado). À noite, um chazinho sem nada, nem mesmo uma torrada. Durante o dia, o turno de yoga, de meditação sentada, de meditação em pé, meditação de olhos fechados, meditação caminhando. Conversar um com o outro, nem pensar. Nem mesmo comunicação com os olhos (as mulheres são mestras nisso, falam tudo com os olhos, possuem mais de 100 olhares diferentes). Até aí tudo bem. Silêncio total, paz e amor.
Mas daí apareceu a lacraia. Como se sabe, para o Budismo, os animais são sagrados (vaca principalmente). Ninguém pode sair por ai matando a bicharada. E no local do retiro, pior ainda: era proibido matar até inseto. Barata, pernilongo, piolho, pulga, todos sagrados.
Num belo dia, estava minha filha em seu quartinho bem simples, depois de um dia extenuante e de pouca comida, prontinha pra dormir. Cama de cimento (sem colchão, acreditem ou não, ela me contou) e travesseiro de madeira. Chão de cimento liso, a mochila em um canto. De repente, ela vê uma enorme lacraia correndo agilmente pelo quarto, com seus 21 pares de pernas. Movimentando a cabeça achatada pra lá e pra cá. As duas antenas segmentadas tateando o ambiente, dois olhinhos escuros laterais, duas mandíbulas abrindo e fechando. Corpo achatado, vermiforme e marrom luzidio, com um par de pernas em cada segmento. Primeiro par de pernas transformado em acúleo para introduzir peçonha na vítima e capaz de picada dolorosa. Provavelmente do gênero Scolopendra, que são lacraias (também chamadas de centopeias ou miriápodes) de cerca de dez centímetros e capazes de matar até pequenos camundongos (como bióloga, optei por descrever o artrópode). Logicamente, minha filha não sabia de tantas características morfológicas do monstro. Só sabia que estava vivendo um filme de terror. Não podia gritar e pedir socorro, pois era proibido até falar, quanto mais gritar. Não podia matar o artrópode porque ele era sagrado. Não conseguiria dormir com ele dentro do quarto. Imaginou-se dormindo com a lacraia andando em seu rosto com os 21 pares de pernas que terminavam em garra, fazendo uma coceira angustiante. Imaginou-se também levando uma picada dolorosa, com os acúleos injetando peçonha em sua pele macia. Arrepiou-se de medo e tomou uma decisão corajosa: pegou o chinelo e tum, tum, matou a malvada! Depois, o drama: onde jogar o cadáver amassado, a prova do crime? Jogou pela janelinha, deitou-se no travesseiro de madeira e dormiu com dor de consciência.
No outro dia, reboliço na varanda abaixo do seu quarto. A lacraia tinha caído lá e a moça da limpeza encontrou o cadáver. Todos os alunos do curso olhando consternados, gesticulando (gesticular podia) sobre quem teria feito a malvadeza. Num ato heroico, minha filha apontou o dedão para o peito e confessou o crime. Sentiu-se a mais reles das criaturas e pensou que seria expulsa. Não foi, mas jamais se esqueceu da lacraia.

*Educadora – anacoelhocarvalho@terra.com.br