Shyrley Pimenta*

Publicado em Paris, em 1509, o Elogio da Loucura satiriza, sem dó nem piedade, os poderosos daquela (e por que não dizer?) e de todas as épocas. O autor do livro, Erasmo de Roterdam, foi um teólogo e humanista holandês (1466 – 1536), era filho ilegítimo de um padre que acabou ordenando-se monge agostiniano aos 25 anos. Dotado de amplo conhecimento humano, tornou-se conhecido pela sua oposição ao domínio exercido pela Igreja Católica sobre a educação, a cultura e a ciência. Sua liberdade de pensamento teria inspirado o também monge agostiniano Martinho Lutero (1485 – 1546) a rebelar-se contra diversos dogmas da Igreja, tornando-se a figura central do movimento da Reforma Protestante. Vivendo no século 16, marcado pelo expansionismo (descoberta do continente americano), pelo espírito de aventura e de revolta, Erasmo não ficou imune àquele tempo de mudança, de transformação. Sua vida foi notavelmente influenciada pelo aparecimento da prensa, e ele tornou-se o primeiro escritor profissional da máquina impressa.

O tema de o Elogio da Loucura ocorreu-lhe quando viajava da Itália para a Inglaterra, ao encontro do amigo Thomas Morus (1478 – 1536), escritor e advogado britânico, autor da obra Utopia. Foi o sobrenome do amigo – Morus – que o fez pensar em mória que, em grego, significa loucura. As reflexões de Erasmo o levam a concluir que tudo o que existe no mundo é feito por loucos e para loucos. Afirma ele: “Nenhuma convivência, nenhuma sociedade, nada, enfim, pode ser agradável e duradouro sem loucura”. Para ele, todas as coisas, para serem toleradas, necessitam ser untadas com o mel da loucura. De que loucura fala Erasmo? Como defini-la? É a própria loucura, pela pena do autor, quem responde: “Não espereis que eu vos dê a minha definição… O que é definir? É encerrar a ideia de uma coisa nos seus justos limites… Ora, como poderia limitar-me, quando o meu poder se estende a todo o gênero humano? …”.

E a loucura continua tecendo elogios a si mesma: “Quanto mais o homem se afasta de mim, tanto menos usufrui e goza dos bens da vida. Vejamos, por exemplo, os velhos. Seriam lastimáveis se a loucura não lhes estendesse piedosamente as mãos e os transformasse novamente em crianças. É assim que a loucura os conduz ao rio Letes e os faz sorver, a largos goles, a água do esquecimento. E eles recuperam a alegria, a juventude, a falta de juízo…”. E por aí prossegue o autor, elencando os loucos e as loucuras de seu tempo. E as loucuras do nosso mundo pós-moderno, a quantas andam?

Jean Baudrillard, filósofo francês (1929 – 2007), escreve que o homem pós-moderno, ausente do próprio destino, entrega-se a uma experimentação sem limites sobre si mesmo. Baudrillard escreveu “Simulacros e Simulações”. Os simulacros seriam experiências, formas e objetos sem referência, mas que se apresentam mais reais do que a própria realidade.

Os simulacros e os sinais constituem, de forma assustadora, o mundo contemporâneo, de tal forma que se torna difícil, quase impossível, a distinção entre real e irreal. Perdemos a noção da realidade concreta. Nosso mundo pós-moderno tornou-se algo sem sentido, vazio, um campo aberto a qualquer coisa, incluindo a loucura nossa de cada dia.

*Psicóloga clínica – Uberlândia