J. Carlos de Assis

Estava em Bonn, na Alemanha, em 1985, quando se realizava a conferência dos sete grandes sob a irresistível liderança de Ronald Reagan e Margarett Thatcher. Ao ler o comunicado final me dei conta de que, para os líderes ocidentais, ali morria a social democracia europeia e ascendia com força o neoliberalismo. Como em conferência desse tipo, dominava a cobertura política. E os jornalistas políticos, pelo que percebi, não entenderam absolutamente nada do que estava acontecendo. Seu foco era o conflito EUA/URSS.
Talvez pelo fato de ser economista me foi mais fácil entender os códigos. Pensei comigo mesmo: isso não demora muito a chegar ao Brasil. Chegou pela mão caótica de Collor de Mello e de sua equipe atabalhoada. Ao interregno moderado e prudente de Itamar, sucedeu um pretensioso e arrogante Fernando Henrique Cardoso, que decidiu enterrara os ganhos sociais da era Vargas. Veio então Lula, com sua política de conciliação bailando entre favorecimento dos pobres e favorecimento a neoliberais por Palocci e Meirelles.
Com essas idas e vindas da economia política brasileira, podia-se prever, em algum momento, uma conciliação. Mas vieram Temer, Meirelles, Moreira, Padilha, Geddel. Trouxeram um pacote de medidas, pós-impeachment, denominado Ponte para o Futuro, que radicalizou as posições neoliberais. Desconheço a existência de algo parecido na história da civilização: é a completa desmontagem de políticas sociais brasileiras de sete décadas, algumas já efetivadas, como a reforma trabalhista, e outras em perspectiva, como a da Previdência.
Como entender essa estupidez que levará necessariamente a uma reversão desse processo infame, já que só um idiota imaginaria que a sociedade toleraria essas medidas indefinidamente? De fato, bastou a ação de algumas centenas de milhares de caminhoneiros, aliás bastante desorganizado, para pôr em cheque o regime. Notem: por trás da política dos preços do diesel está a Petrobrás, por trás da Petrobrás está o Governo, por trás do Governo está o “mercado” – notadamente o “mercado” internacional de ações, ou o neoliberalismo.
Para atender ao “mercado” – essa entidade mítica que fala pela boca das pitonisas da imprensa -, Pedro Parente pôs em risco o próprio regime. Ele está agarrado ao princípio de que os acionistas privados da Petrobrás tem absoluta prioridade nas decisões da empresa. Isso significa que, sem ser vendida, a empresa já é dos privatistas. É estranho, porque, do ponto de vista formal, trata-se de companhia de economia mista sob controle estatal. Entretanto, seu presidente não responde ao Governo, mas, uma vez mais, ao que ele chama de “mercado”.
Vamos entender um pouco mais de “mercado”. Sou jornalista há mais de 40 anos e conheço os códigos também nisso. Na época em que era subeditor de Economia do JB, no fim dos anos 70, sob Paulo Henrique Amorim, jamais ouvi ou mandei que fosse ouvida a opinião de alguma analista ou operador de banco sobre política financeira. Seguia rigorosamente o que observava John Kenneth Galbraith, um dos mais eminentes economistas do século XX: “não posso levar a sério opinião econômica de quem tem interesse próprio em jogo”.
As opiniões do “mercado” são um jogo de manipulação recíproca. O entrevistado quer tirar proveito pessoal da entrevista. E o jornalista em geral é um vagabundo ignorante, disposto a colocar no papel (ou na tela) qualquer idiotice subjetiva para agradar o editor e, através dele, o patrão. Isso fica mais evidente com a cobertura de bolsa: a interpretação pela imprensa, em geral combinada entre os jornalistas, por temor de serem dissonantes entre si, é capaz de atribuir tendência de longo prazo a fatos absolutamente fortuitos.
Agora voltemos à greve dos caminhoneiros. Tendo em vista o desastre que foi a entrevista coletiva dos ministros, ontem, duvido que algum caminhoneiro – ou melhor, algum cidadão comum – tenha entendido a proposta do Governo. É uma combinação paranóica de decisões, algumas de preço e outras de tributos -, cujo objetivo é atender, de forma simultânea, dois objetivos. Primeiro, dar o tal subsídio temporário. Segundo, compensar o subsídio com tributos. Pergunta-se: o que o caminhoneiro tem a ver com tributos?
Dizia Lenin que, nos processos históricos, a corrente se rompe pelo lado mais fraco. Os caminhoneiros não são de forma alguma grandes ideólogos revolucionários. Nem eles, nem os petroleiros. Porém, objetivamente, estão fazendo uma revolução. Não existe nisso a famosa consciência de classes dos comunistas tradicionais. É a consciência da fome. A variação do preço do diesel incide diretamente na sobrevivência deles e de suas famílias. Não é com conversa fiada de cunho neoliberal que o Governo, nessa atura à beira da queda, vai empulhar uma classe inteira.

*Professor de Economia e jornalista. Autor dos livros: A Chave do Tesouro: Anatomia dos escândalos financeiros: Brasil, 1974-1983; Os Mandarins da República: Anatomia dos escândalos na administração pública, 1968-1984; A Dupla Face da Corrupção e Os sete mandamentos do jornalismo investigativo.