Roberto Bueno*

Um dos clássicos e campeões da teoria neoliberal, o economista Friedrich von Hayek (1899-1992) não foi o único a sustentar que “A democracia é o único método de mudança pacífica descoberto até agora pelo homem”. Podemos estar de acordo que a democracia apresente este aspecto positivo, mas o problema radical para o qual Hayek não atentou e que já era presente em seus dias assim como o é nos nossos, diz respeito a resposta sobre quais são as regras de fundo que constituem e realmente definem aqueles grupos que poderão assumir o poder. A resposta a esta pergunta é decisiva na medida em que ela é definidora da virtude central da democracia que, para além da transição pacífica do poder reside no fato da real alternância no poder. A rigor, se não houver real possibilidade de acesso e exercício do poder por diferentes grupos políticos comprometidos com o respeito às regras e sintonia com a vontade popular, então de pouco ou mesmo nada vale que as transmissões de poder se deem pacificamente.
O elogio de Hayek sobre a virtude da democracia tem, portanto, relevância apenas secundária, pois desconsidera o fato decisivo das formas de acesso ao poder, despreza o ponto essencial da questão de que, sem o devido cuidado, sempre os mesmos grupos poderão oscilar no poder, e assim a pacífica transição observada por Hayek nada significa em face de que os poderosos sejamos os mesmos. À partida, a preocupação do liberalismo com a onipotência dos poderosos e, em especial, com o poder do Estado, era algo real e passível de imposição abusiva sobre os indivíduos, e por isto a teorização sobre a representação parlamentar e seus poderes de controle do Poder Executivo foram propostas. Nos dias correntes o cenário é bem outro, pois o seu sucessor teórico, o neoliberalismo, corroeu os mecanismos de controle do poder para tornar factível a migração do poder da órbita da política para a da economia e, por esta via, realizar a consolidação do neofascismo financeiro. Sob esta estratégia a população foi destituída de sua representatividade parlamentar como instância de controle do poder e capaz de servir como elemento de fiscalização dos mais altos poderes do Estado. Isto agora é passado, e do futuro ainda pouco ou nada sabemos.
Hayek reconhece que a democracia apenas pode ser admitida enquanto tal se uma maioria puder formar a sua opinião para além da influência do governo. Mas Hayek comete equívoco ao concentrar o seu temor na esfera de poder que já não era, ou é, aquela que impõe maior temor, pois o governo em que estava a fonte do suposto perigo-mor, hoje com toda a clareza, quem o detém e impõe são as grandes transnacionais, cujo poder desconhece fronteiras, despreza pessoas e determina escolhas de políticas econômicas dos Estados e as políticas públicas de diversas nações. Esta realidade distorce o pressuposto hayekiano de uma democracia, qual seja, que “El ideal de democracia se basa en la creencia de que el criterio que inspira a quienes gobiernan se origina en un proceso independiente y espontáneo”. Nada disto caracteriza este cenário do neofascismo financeiro.
Hayek apresenta como pressuposto da democracia algo que o neoliberalismo jamais poderá oferecer ou cumprir uma vez que não pode abandonar a lógica interna da concentração econômica (e de poder), e que por isto atinge fatalmente o seu requisito da “[…] existencia de una gran esfera libre del control de la mayoría, en la que se forman las opiniones de los individuos”. É este distanciamento que desloca qualquer aspiração democrática do terreno do factível em tempos do neoliberalismo ou de suas versões fascistas-financeiras. Portanto, se realmente aspiramos conhecer os fundamentos da democracia, o primeiro ponto a deter-nos é que o governante precisa estar coberto de suficiente nível de legitimação popular, e em nenhum momento indiferente e alheio a ela. Adotar tal postura implica ressuscitar as instâncias do autoritarismo que com muito pouca insistência e nenhuma cerimônia adentra nos mais sofisticados gabinetes e passa a dominar as ações dos governos subordinados às demandas do neofascismo financeiro.
Argumento típico do neoliberalismo hayekiano e que resulta tremendamente útil para os fins do emergente neofascismo financeiro é o de que a ordem jurídica não é produto de alguém ou de algum grupo identificável. Esta desvinculação do mundo real daqueles que são os atores que o constroem e o habitam traz sérias consequências para a percepção dos sujeitos históricos quanto a sua capacidade de intervenção no mundo. Esta barreira ideológica que evita apresentar-se como tal, e termina por reforçar a percepção de impotência do homem relativamente à sua possibilidade de intervenção sobre o mundo do real e também sobre as instâncias ideológicas alternativas disponíveis para conectá-lo com as chaves de apropriação desta sua grande residência da qual tem acesso restrito a modestas dependências. A reversão da cena depende do fortalecimento coletivo e da compreensão de que apenas juntos somos alguém.
Para o neoliberalismo de Hayek é possível concluir que o verdadeiro apartheid social concretizado pela profunda e pornográfica desigualdade social brasileira é um objeto de todo indiferente. Nesta medida ele serve de base para o neofascismo financeiro que agrava os pressupostos hayekianos, sobretudo úteis aos naturalizar os abismos da desigualdade social sob o argumento de que se trata de uma realidade sem autores ou responsáveis identificáveis. Burdo argumento, pois bem sabemos os brasileiros a quem aproveita este estado de coisas e quem são os manipuladores do Poder Legislativo (inclusive) que extraem a torto e mau direito as normas jurídicas que servem aos seus interesses.
O neoliberalismo político de Hayek assenta em valores compatíveis com o pretenso neoliberalismo econômico contemporâneo, especialmente em seu comum elitismo-fascistóide dos dias correntes revoga. A preocupação desta emergente corrente que transpõe os limites do neoliberalismo é o neofascismo financeiro, que posiciona homens e mulheres como meras estatísticas, para o que o valor do mundo consiste tão somente na contabilidade das empresas e em nenhum caso na percepção de homens e mulheres como seres vivos para além de unidades de produção econômica substituíveis.
Hayek apresenta o argumento de que pode muito bem ocorrer que a intervenção de uma elite bem educada resulte em um cenário econômico e político mais eficiente e, quiçá, ainda dotado de superior justiça do que outro formado por qualquer outro governo escolhido democraticamente. Contudo, é pouco crível que medidas políticas calçadas em padrões de justiça sejam prováveis quando impostas por uma elite burocrática desvinculada da formação da vontade política a partir das instâncias da população. O que não resta bem apresentado como defesa da democracia no texto de Hayek e o distancia de sua defesa é a sua preocupação com o desenvolvimento econômico a expensas das instâncias democráticas, relegadas a um segundo e desimportante plano. Hayek abre a porta para a possível superioridade de “outros sistemas” sobre a democracia, mas que esta, a longo prazo, somada a sua maximização das liberdades, apresentaria os seus benefícios. Contudo, a abertura desta brecha é um grande e sedutor convite para os aproveitadores e oportunistas de plantão abortar a perspectiva libertário-democrática. (segue).

*Professor Universitário.