Alcino Eduardo Bonella*

Em 31 de outubro de 2017 comemoramos os 500 anos da Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero. Um dos legados mais importantes da Reforma foi que, em grande parte, ela impulsionou e fortaleceu a reflexão e a prática da tolerância religiosa e política, ao criar uma Europa com muitas e divergentes confissões cristãs.
Por outro lado, em parte foram os conflitos religiosos que continuaram entre as igrejas protestantes entre si, e entre estas e a Igreja Católica, incluindo guerras sangrentas e conflitos políticos constantes, que, junto com a Reforma, contribuíram para se achar a melhor solução prática e política para pacificar as religiões: o chamado Estado secular ou laico.
Trata-se do Estado em que há separação entre Política e Religião, entre governos e Igrejas, não só uma ideia e atitude deste ou daquele grupo, mas algo institucionalizado. O Estado secular é aquele que é neutro em relação às crenças religiosas. Em geral as pessoas hoje em dia se referem ao ideal de neutralidade como algo negativo, por indicar uma postura de ficar “em cima do muro”: mas no caso da relação entre Igrejas e governos, é exatamente disto que se trata, que o Estado não tome partido por esta ou aquela religião ou igreja, mesmo da maioria.
Um Estado que garante mais efetivamente o direito à livre consciência, à livre expressão e à liberdade religiosa implica que as Igrejas não podem usar do poder político nem da influência de instituições do Estado (como as escolas públicas) para avançar suas agendas ou seus costumes. O Estado secular é um tipo de privatização das religiões: elas se expandem na esfera privada, civil e social, mas não na esfera pública, estatal e política. Com isso seus recursos para expansão e divulgação voltam a ser a pregação e o exemplo, e não mais o uso da força legal ou policial. Um exemplo claro é o ideal do casamento ou a ideia do divórcio. Uma Igreja pode ser contra o casamento gay, mas terá de convencer pela pregação e pelo exemplo, e não mais usar as leis e a força estatal para proibir que aqueles gays que desejam se casar o façam na esfera civil.
Tal separação entre Estado e Igrejas é antes de tudo uma garantia e proteção a cada uma e todas as igrejas e também a outras comunidades religiosas (não cristãs), e o enfraquecimento de tal Estado é um enfraquecimento da vida religiosa em si mesma. Quanto menos presença e influência das Igrejas na esfera estatal, maior sua diversidade e expansão na esfera civil.
Algo que para algumas pessoas enfraquece o Estado secular é a crescente influência de políticos religiosos tradicionalistas nas políticas públicas, apelando explícita e oportunisticamente a sua religião particular, por exemplo, para formatar políticas de educação (ensino religioso em escolas públicas) ou de saúde (proibição total do aborto) ou na produção de legislação (proibição do casamento gay).
Outro fator de enfraquecimento do Estado secular é a crescente insistência de parte também crescente das pessoas religiosas comuns em tentar censurar e proibir ideias e atitudes que elas desaprovam, ora com o poder do Estado (acionando os políticos eleitos para fazerem a censura), ora com a pressão social em manifestações nas redes e nas ruas visando tal censura e proibição. A manifestação que visa criticar ou expressar desaprovação ao que quer que seja é boa e correta, consequência exatamente da liberdade de expressão. Mas a pressão visando proibir ou censurar seja a expressão artística seja a crítica à religião, é ruim e incorreta, pois desrespeita a mesma liberdade de expressão que se possui.
Algumas vezes há a pura violência física a outras formas pacíficas de vida (como a gays), ideologia (como a ateus) e espiritualidades (como a religiosos de matriz africana).
O humanismo moderno não religioso desenvolveu e ampliou um senso de civilidade e fraternidade entre todos os homens e um conjunto de instituições democráticas atuais, como o fim da imposição estatal de uma religião oficial ou igreja oficial. Mas tal humanismo e tais reformas foram impulsionados também pelo próprio cristianismo, no caso, pela Reforma Protestante.
Um cristianismo mais pacífico, mais humanista e mais pluralista é um dos principais legados civilizacionais da Reforma, algo que cabe a todos, cristãos ou não, comemorar e defender.

*Professor universitário