Roberto Bueno*

Este contexto conflitivo era bem compreendido e reconhecido por Brizola, e seu argumento era válido para todos os momentos, de que os golpes de Estado apenas são possíveis com o concurso das Forças Armadas, e deste modo, portanto, o conceito de liberdade precisa ser trabalhado também em conformidade com a elasticidade que este território comporta. Confrontado com um golpe de Estado em 1961 Brizola assumiu a clara e dura postura que se exige de homens políticos, infelizmente em extinção: “Não pactuaremos com golpes ou violências contra a ordem constitucional e contra as liberdades públicas. Se o atual regime não satisfaz, em muitos de seus aspectos, desejamos é o seu aprimoramento e não sua supressão, o que representaria uma regressão e o obscurantismo”. A via desobstaculizadora do caminho é a ação popular, o que Brizola já bastante bem percebeu ao sustentar que “Entendo que precisamos deixar de lado as palavras e passar à ação” prévia constituição e organização das massas para forçar a realização de seus destinos.
“É justo, humanamente justo, patrioticamente justo, que somente a minoria, filhos da fortuna, cercados de todas as garantias, possa realizar as suas aspirações, e os filhos da pobreza somente o consigam, à custa de sua própria saúde, ou então, inexoravelmente, morram na ignorância?” Brizola esteve próximo de João Goulart neste aspecto, e quando Jango ocupando o Ministério do Trabalho aumentou em 100% o salário mínimo no início do ano de 1954 durante o Governo Getúlio Vargas, não restou outra alternativa a este do que promover a saída de Goulart do Ministério em face das pressões públicas dos setores econômicos e militares com o seu Manifesto dos Coronéis (assinado por 82 oficiais), expressando a profunda insatisfação com o fato de um trabalhador ordinário passar a ganhar o mesmo que um segundo-tenente do Exército.
Jango era visto menos como Ministro do Trabalho do que como Ministro dos trabalhadores, e isto era tão insuportável do ponto de vista da força política que passavam a ostentar quanto do próprio ponto de vista do status econômico. Mas como não adotar posições fortes e decididas em face de realidades tão chocantes como aquelas criticadas duramente por Brizola, que deparava com uma Porto Alegre em que 10% da população não dispunha de residência, acomodando-se sob pontes, baiúcas e promíscuas aglomerações? Este era o verdadeiro signo da desgraça e da calamidade pública contra os quais, definitivamente, o poder público não pode deixar de opor-se, mas como pode fazê-lo um Estado que se desentende de suas funções a partir das artimanhas que pretendem transformá-lo em uma versão mínima de si mesmo? É preciso identificar as mazelas do parlamento e do Estado e agir, é preciso reconhecer com Brizola que em uma “[…] época, de fome e miséria, vir para a tribuna cantar as excelências de um regime que já não mais existe no Brasil, é prestigiar, por assim dizer, a ação dos detratores desse próprio regime, é comprometer os verdadeiros ideais e postulados da democracia, e principalmente passar um atestado de ineficiência ao único regime compatível com a dignidade humana”, mas que requer sucessivamente a atenção e intervenção pública em sua proteção, e o primeiro movimento é esclarecer que o capital tem de ser substituído pelo voto no controle dos assuntos políticos, única via democrática capaz de propor vias eficientes para garantir o bem-estar coletivo.
O capitalismo em sua versão mais agressiva, norte-americana, é individualista radical, cujas versões modernas estão compostas por uma espécie de darwinismo socioeconômico. A seu modo Brizola compreendeu que a sociedade democrática e protetora dos direitos dos trabalhadores não pode guardar qualquer compromisso com tal modelo, afirmando que “Às sociedades humanas, jamais poderemos aplicar exclusivamente o mecanismo naturalista da seleção biológica”, ou seja, é preciso ter clara a perspectiva da necessidade de intervir no processo de organização social em que, por exemplo, a própria riqueza não é derivação de um processo natural, mas sim de instituição de favores e privilégios, tais como o direito de herança, que pode conceder altíssimas vantagens comparativas de uma pequena minoria relativamente a uma enorme massa de homens e mulheres desfavorecidos. Brizola não se opõe visceralmente ao direito de herança, mas não deixa de sublinhar o quão nefasto pode ser em alguns casos ao potencializar a falta de oportunidades de muitos em favor de alguns poucos indivíduos que nada fizeram para desfrutar de tantos favores, que “Tudo terá nas mãos sem nada ter feito, enquanto que milhares da mesma geração, de carne e osso, como ele, permaneçam na ignorância, pela única culpa de terem nascido na pobreza”. É a inércia do homem e da sociedade em face da miséria humana o que a torna abjeta, é a indiferença em face a detração presente e comprometimento futuro de nossos semelhantes o que nos condena, e é precisamente com isto que Brizola não manifestou a sua conformidade.
A construção de caminhos passa pela compreensão e intervenção profunda na realidade inóspita ao humano, aspirando superar os problemas historicamente presentes na sociedade brasileira já tão bem desenhados por Brizola ao indicar que “Precisamos consolidar o regime democrático, […] a ordem política, mas precisamos, sobretudo, encarar nossos problemas sociais e econômicos para conquistarmos a recuperação da maioria do povo brasileiro […]”, e é neste aspecto que reside o grande desafio e a encruzilhada da nação, e isto está a depender de uma forte articulação popular confirmando o nível de legitimidade suficiente para que um governo de fato popular possa enfrentar as mil faces do poderio econômico, todas elas opacas, feias, sujas, vis e nefastas.
A construção de caminhos, vale dizer, sobre as bases iníquas de uma sociedade que estabelece privilégios como se fosse puro mérito, e que institui a ignomínia como se fosse pura justiça. Precisamos recordar com Brizola que necessitamos de um regime de igual oportunidade como única chave para acessar os dias e as instituições democráticas, mas este regime jamais será instaurado enquanto as pré-condições para a intervenção na cena política e a ocupação de mandatos sejam similares as que temos hoje. O primeiro passo é subverter a ordem multicentenária do Brasil, sociedade capaz de contemplar pacificamente o fato de que “[…] os grandes têm todos os direitos e todas as regalias, e os pequenos, esses vêem até os seus direitos consagrados na Constituição menosprezados pelos poderosos”, análise sociopolítica que cobra imensa atualidade.
Certamente, assiste atualidade ao comentário de Mangabeira Unger ao exclamar a sua perplexidade ante os rumos aparentemente fechados com a morte de Brizola: “Encontraremos um caminho ou faremos um caminho”. E o caminho é um só, a saber, aquele que o povo desenha, e todos que exercem o poder sem mandato direto estão a violar os fundamentos da democracia, e como bem atenta Brizola, “O desenvolvimento não se faz sem mobilização humana, sem a participação das grandes massas, porque tudo é o homem quem faz, tudo depende do homem, tudo depende do povo e de bons dirigentes”. Mas se algum regime se constitui ao arrepio desta única fonte legítima do poder, o povo, então sob tal regime a violência é a insígnia de suas ações, e a nulidade é o distintivo que marca o conjunto de todos os seus atos jurídico-políticos.
A estirpe de homens como Brizola está em extinção, e disto temos nota concreta quando a sua voz se levantou em resposta desde os porões do Palácio Piratini em Porto Alegre através da Cadeia da Legalidade à tentativa de golpe de 1961, quando após a renúncia de Jânio Quadros as forças conservadoras e autoritárias, setores militares incluídos, pretenderam impedir que o vice, João Goulart, então em viagem à China, regressasse para assumir a Presidência da República, a quem consideravam ameaça de implementação de uma república sindicalista, genuína brecha para a ascensão do comunismo no Brasil.
Brizola esteve no centro dos acontecimentos ao articular a Cadeia da Legalidade enfrentando as mesmas forças golpistas que voltariam à ribalta em 1964, corajosamente posicionando-se ao dizer que “[…] nós não nos submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo”. O caminho é um só e perpassado pela concretização da justiça social, algo também explicitado pelos fins do Governo João Goulart anunciados em sua mensagem ao Congresso Nacional ainda a 15 de março de 1964, quando denunciava o peso da ignorância na vida nacional, mas também da miséria e da injusta distribuição de renda assim como das nefastas consequências da desigualdade de oportunidades e da falta de similar acesso popular ao mundo do trabalho e à educação.
O caminho para a superação deste rumo que não foi traçado pela divindade e, portanto, inevitável, está aberto, e nós precisamos não apenas traçá-lo autonomamente como imediatamente percorrê-lo, e para começar a caminhada é dando o primeiro passo que se inicia, por vezes trôpego, mas firme em seus propósitos, mesmo quando a ameaça seja grave, iminente e cruel, e para estes momentos a resposta brizolista era clara: “Podem nos esmagar, num dado momento. Jogarão o País no caos. Ninguém os respeitará. Ninguém terá confiança nessa autoridade que será imposta, delegada de uma ditadura. Ninguém impedirá que este País, por todos os meios, se levante lutando pelo poder. Nas cidades do interior surgirão as guerrilhas para defesa da honra e da dignidade, contra o que um louco e desatinado está querendo impor à família brasileira”.

*Professor universitário.