William H. Stutz*

Curioso, outro dia um conhecido de longa data que não via, nem o ouvia há tempos, do nada me ligou.
Depois das conversas de sempre entre dois que não se falam há séculos, veio o real motivo da ligação. Pessoa de quem gosto e considero, mas não era saudade que o levou a descobrir meu telefone e fazer contato. A razão da ligação foi técnica, digamos assim. Ele está a preparar sua qualificação em algum mestrado e este envolve o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ). Segundo ele, em suas pesquisas e levantamentos bibliográficos nada encontrou sobre a história daquela unidade da Secretaria Municipal de Saúde de Uberlândia. Creio eu que em algum lugar estes dados devem estar registrados mas pesquisar é moroso e chato para quem não está acostumado, compreendo. Como testemunha viva participei da elaboração do projeto inicial, da peregrinação pelos gabinetes do Ministério da Saúde em Brasília na busca de recursos, cumprindo cada etapa de um vai e vem sem fim.

Conseguimos a fórceps captar parte dos recursos necessários. Escolhemos a área e participamos de todos os tramites legais, passando pela interminável e aborrecida burocracia, até ficar do jeitinho que eles lá queriam. Como testemunha ocular, colocamos o primeiro tijolo no primeiro Centro de Controle de Zoonoses do interior do país. Luxo este de poucas capitais até então, o qual viria ser reconhecido como referência nacional em poucos anos de trabalho árduo.

O que nos levou a idealizar e focar na implantação de um CCZ em Uberlândia dizia respeito à avassaladora presença da raiva animal entre nós. O vírus rábico circulava sem o menor controle e a primeira missão destinada a mim como médico veterinário seria exatamente trabalhar para conter tão letal doença, para animais bichos e humanos.

O ano era 1983. O prefeito à época Dr. Zaire Rezende (1983-1988) e o secretário de saúde Dr. Flávio Alberto Goulart.
Cabe aqui contar que em meu período como estudante em nossa Escola de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Uberlândia, na qual me formei em 1980, uma das máximas de nosso professor de Histologia, hoje pela segunda vez Secretário Municipal de Saúde, Dr. Gladstone Rodrigues da Cunha sobre a complexidade do processo saúde/doença era:
“O que é comum é comuníssimo, o que é raro é raríssimo”. Carrego comigo tais ditos até hoje e os deixo fugir do academicismo puro aplicando-os em minha vida. Gratidão a todos os meus mestres.
Bom, voltando à vaca fria.

O então denominado Centro Regional de Controle de Zoonoses (a ideia inicial era criar um consórcio entre municípios) repito, o primeiro do interior do Brasil, foi oficialmente inaugurado em março de 1988. A primeira fonte de captação de recursos foi o antigo e já extinto Programa Nacional De Zoonoses (PNZ), órgão do Ministério da Saúde e à época coordenado pelo Dr. Carlos Alberto Viana Costa.
Como disse, o objetivo inicial do CCZ era controlar a raiva animal.

Ações incontáveis foram desencadeadas, a começar com uma super e massiva campanha de vacinação da população animal, posto que no ano anterior esta não foi realizada. Trabalhávamos em parceira com a Policia Militar que cedia e com alunos do Curso de Medicina Veterinária UFu, eu mesmo já tinha participado de várias à época de estudante.
Projetos de educação em saúde, palestras, feiras, cartilhas e até um “CãoCurso” do Vira-lata mais bonito foi realizado. Árduo, contínuo e incessante trabalho. A doença mostrava sinais de cansaço e de um constante recrudescimento, começando a rarear, diminuir.
Assim, em setembro de 1997 ocorreu o que consideramos o último caso de raiva animal urbana diagnosticado em nosso município, em um pequeno gato de aproximadamente sete meses de idade.

De lá para cá, nenhum caso da doença foi registrado e graças à vigilância permanente, sem nenhuma solução de continuidade até os dias de hoje, a raiva passou a ser um problema a menos na saúde coletiva de nosso município. Claro que a ameaça de retorno vai sempre existir. Basta as ações de controle de vigilância afrouxarem ou serem interrompidas que a doença, 100% letal, pode voltar com força total. Saúde é assim, atenção absoluta se faz necessária. Hoje a raiva segue seu ciclo, sua história natural e continua circulando onde sempre esteve, na população de morcegos. É importante frisar que estes morcegos urbanos não oferecem risco à população e são protegidos por lei, pelo bem enorme que fazem ao ecossistema. Em caso de morcego caído ou voando durante o dia, contate o CCZ e jamais toque no bicho, pois ele pode morder para se defender e aí moço é procurar orientação médica imediatamente.

Missão comprida no que diz respeito a Raiva animal, outras e importantes atribuições foram sendo agregadas ao CCZ, principalmente depois que participamos do Curso de Especialização em Gerenciamento de Centros de Controle de Zoonoses, realizado no CCZ de São Paulo realizado pelo Ministério da Saúde, da Organização Pan-americana de Saúde e da Escola Nacional de Saúde. Com carga horária de mestrado, aprendemos muito com os melhores.

Muitas destas novas atribuições ligadas a bichos não eram percebidas pela população. O problema dos escorpiões é um exemplo. A população convivia com os mesmos, desconhecendo os riscos que estes poderiam oferecer à saúde. Acidentes eram comuns.
Durante os anos em que atuei no controle e manejo de escorpiões, mais de três décadas, tivemos um único óbito, cuja criança foi socorrida a tempo, recebeu soroterapia, mas por algum motivo, que os próprios médicos não conseguiram explicar, a pequena não pode ser salva. Foi um baque para todos envolvidos na ação de controle e do corpo médico que a atendeu, dentre eles o Professor Dr. Paulo Victor, o PV, como o chamávamos. Superespecialista no assunto e que nos deixou precocemente. Perda irreparável.

Assim à medida que o tempo passava outros programas eram incorporados: Roedores, Chagas, Malária (diagnóstico e tratamento), Quirópteros, Leishmaniose e finalmente Dengue. Este foi o grande avanço do CCZ, a municipalização do programa de controle de Aedes, antes atribuição da extinta SUCAM. Um programa que considero referência pela maneira sua atuação. Claro, como é um programa gigante ficou vulnerável em várias ocasiões a ingerências políticas, sendo estas um dos maiores erros das administrações públicas no Brasil, seja na esfera federal, estadual ou municipal. Áreas técnicas que funcionam deveriam ser intocáveis. Um exemplo? O coordenador do CCZ na gestão do prefeito Gilmar Machado ( 2013-2016) era um leigo e, quer queiramos ou não, isto em muitas ocasiões atrapalhava o andamento técnico das ações em saúde.. Inconcebível. Tinha boas intenções? Talvez. Mas é o bastante para gerenciar uma estrutura eminentemente técnica? Jamais. Foi um fiasco e imenso retrocesso, não apenas no Controle de Aedes mas afetou quase, senão todos programas.

Registre-se o Programa de Controle de Aedes, vou chamá-lo assim ai de uma tarrafada só englobamos dengue, zica e chikungunya, conseguiu superar todas ondas contrárias e de gerenciamento e segue de vento em popa e com resultados alvissareiros. Deus, dirigentes e técnicos competentes o conservem assim.

Mudando de pau para cavaco. Convém registrar que as primeiras contratações feitas pelo CCZ foram realizadas por meio de seleção entre os moradores do Bairro Santa Rosa e Liberdade, local onde implantamos o Centro de Controle de Zoonoses, no qual este ainda está firme e forte. Naquela bairro então ermo, longe e de difícil acesso foi realizada uma prova teórica, uma avaliação psicológica e entrevista. Tal seleção contou com a participação direta da Associação dos Moradores do Bairro. A ideia e a determinação do então prefeito Zaire Rezende apontava para este procedimento. O lema daquela administração era “Democracia Participativa” e as organizações populares deveriam se envolver. Não tenho segurança para afirmar que o melhor caminho foi exatamente esse, já que em pouquíssimo tempo quase nenhum dos “aprovados” na tal seleção continuava morando no bairro.

A primeira ampliação física de nosso CCZ aconteceu na administração do Prefeito Virgílio Galassi (1989/1992), da qual participei também na discussão de projetos. Embora modesta em se tratando de estrutura física, foi substancial no que tange a equipamentos e veículos. O crescimento já demonstrava que nosso trabalho tinha sua importância reconhecida. No período de longos onze anos o Dr. Dorival Sanches e logo a seguir o Dr. Paulo Roberto Salomão, estiveram à frente da Secretaria Municipal de Saúde e nos deram apoio irrestrito.
Na administração do prefeito Paulo Ferolla da Silva (1993/1996) foram implantados os laboratórios de sorologia, entomologia e de animais peçonhentos, do qual fiquei à frente até fevereiro de 2017 quando fui afastado das ações de campo e manejo. Coube a mim e alguns de minha antiga equipe cuidar do biotério de escorpiões onde realizamos manutenção, quarentena, identificação de espécies e estudos etológicos de comportamento dos escorpiões. Nele continuamos a preparar lotes de animais para envio a laboratórios oficiais produtores de veneno, como a Fundação Ezequiel Dias e o Instituto Butantan. Digo sempre e repito, salvar vidas humanas continua sendo o meu sacerdócio.

O período de 2001 a 2004, novamente sob a administração do Prefeito Zaire Rezende, foi tristemente sofrível para todos os setores da prefeitura. Os escassos recursos e certa confusão administrativa bloquearam o muito a fazer. Enfim, a história fará seu julgamento, assim como fará do ciclo há pouco encerrado da gestão Gilmar Machado (2013-2016) onde, repito, sofremos pressões absurdas por parte de coordenações do CCZ.

O grande “jump” no que tange a estrutura física e reorganização do CCZ se deu nas gestões (8 anos) do prefeito Odelmo Leão Carneiro (2005/2012), na qual em 16 de janeiro de 2009 reinagurou-se o CCZ, completamente reformulado, com novas instalações e estrutura. Na ocasião tive a honra e a surpresa de presenciar o “batismo” do Centro de Controle de Zoonoses com meu nome. Honraria esta que divido com cada um que ali colocou seu esforço, trabalho e dedicação.

O referido período foi de muito crescimento, tanto em sua estrutura, quanto no reconhecimento nacional. Pudemos participar como um dos autores do Manual de Controle de Escorpiões junto ao Ministério da Saúde, com um fantástico grupo de profissionais, todos especialistas em escorpiões.
Fomos ainda convidados a participar o MANUAL DE VIGILÂNCIA, PREVENÇÃO E CONTROLE DE ZOONOSES, NORMAS TÉCNICAS E OPERACIONAIS, trabalho minucioso e demorado do qual participaram especialistas de todo o Brasil. Sua publicação, depois de longo período de gestação e em conjunto com a Portaria do Ministério da Saúde de N° 1138/2014, revolucionou o modus operandi dos CCZs . Publicado apenas em 2016 é um documento que consolida o controle de zoonoses e animais peçonhentos no Brasil. Apesar de redação clara e objetiva, muitos o interpretam de acordo com suas conveniências.

Não tenho intenção de julgar a forma de atuar de cada gestão pelas quais passei ao longo de mais da metade de minha vida, apesar de me sentir seguro e capacitado para fazê-lo, caso resolvesse descer às filigranas, a detalhes que bem conhecemos. Quanta coisa a contar. Não, não é esta a intenção pelo menos aqui neste breve relato, súbita catarse. Bom, breve para quem ainda tem costume de ler.
Aqui quero, (me desculpem o uso da primeira pessoa com tanta frequência, mas logo abaixo vou me redimir), deixar apenas uma simples narração do que foi uma vida de trabalho e realização pessoal.

Podem me tomar tudo ou não gostar de mim, mas apagar o que construímos em prol da saúde coletiva de nossa gente, isso meus amigos e inimigos, roam ossos, por mais que apaguem arquivos, feitos, arranquem placas ou mudem nomes de estruturas, minha, nossa história tomam não. Uma coisa carregaremos eternos, herança de trabalho duro e muita entrega. Lembrança que deixaremos para nossos filhos e netos. A marca do pioneirismo, da trilha, da picada aberta a paixão, a alegria que todos que chegaram e/ou chegarem depois terão obrigatoriamente por ela passar, acaba nunca, temos sim o orgulho se poder dizer com orgulho: Fizemos.
Aqui destaco os “dinossauros” que lapidaram esta estrutura tão importante desde o comecinho, desde o primeiro tijolo. Alguns já partiram para o Oriente Eterno, mas serão para todo o sempre lembrados:
Edilson Medeiros de Macedo, Jovenil Gomes da Silva (†)
Paulo Cesar Ferreira, Oscar Carvalho, Abadio Antonio da Silva, Anadir Batista Silva, Jurandir Maria Terezinha, Sonia Maria de Freitas, Darci de Freitas, Almeri Joaquim, Seo Divino Vigia (†), Batista, Seo Franciso, Seo Vicente (motorista de nossa espetacular e restaurada Kombi 1966).
Se esqueci de alguém me perdoem ou me lembrem. Culpem o tempo.
Espero em breve apresentar a história esmiuçada de nosso Centro de Controle de Zoonoses, recheada de histórias e muitas fotos, cujos primeiros esboços já estão prontos. Chamemos, pois este breve resumo de um prelúdio da grande história.

A árvore plantada cresceu forte, abriu copa, deu sombra farta e frutos maravilhosos. Que, como uma Sumaúma, um imponente Jequitibá ou um sagrado Baobá, ela se perpetue e tenha estrada e belezas a realizar e escrever, sempre objetivando o cuidado com a vida animal e das gentes humanas.
Longa vida ao CCZ.

*Veterinário e Escritor