William H. Stutz*

Uma libélula voa apavorada em minha sala. Faz-se noite, não posso nem abrir janela para deixá-la ir-se, viraria presa fácil. Seu voo helicóptero a conduz em direção ao globo de luz. Bate de frente. Recuo preocupado. Ligeiro, bato a mão no interruptor e a escuridão se fecha. Ouço o aflito bater de asas procurando pouso. Nada, achou foi a luz da cozinha. Sigo sua agonia.
Vontade de pegar nas mãos, guardar em caixa de sapato e soltar amanhã com o frescor do orvalho. Melhor não, elas são frágeis como algumas pessoas especiais em sentimento. Quebram facilmente, não quero magoar nem bicho nem gente. Apago tudo. Acendo pequena vela. Tenho paixão por luz de vela, o que devia imaginar é que libélulas também.
Me dou conta que armei armadilha mortal para aquelas asas de pura e transparente seda. Em investida suicida roçou asas na chama perfumada. Senti aperto no coração, frio na espinhela. Em voo aparentemente derradeiro topou forte na parede. Imóvel se fez no chão frio. Acendo a luz com um sentimento de culpa gigante. A vejo, atrás do aparador. De canto de olho, miro meu São Jorge, presente de uma amiga especial. Peço em milésimo de segundo que me preserve de tamanha imputação.
Com cuidado de quem já está mais do que acostumado a lidar com as miudezas da vida, como cobras de vidro, escorpiões e sentimentos de alma, recolho a frágil figura.
Óculos, meu reino por um par de óculos. Devidamente com olhos, a observo cuidadosamente. Nada que mostre machucado, nada que a impeça de alçar voo. Talvez tonta pelo espanto de um tremular de fogo. Talvez a essência aromática a tenha abatido. Fico com ela na palma da mão por imensos minutos. Uma perna se mexe, estica devagar. Uma asa, outra asa, quatro asas e tremor, de motor de B-29, porém sem escândalo característico das máquinas de guerra e morte. Uma anteninha curiosa vibra. Num golpe rude alça voo sem rumo. Sigo com os olhos e sei bem onde pousou.
Volto à escuridão minha casa. Escovo dentes mergulhado em negrume. Ligo meu rádio que não mostra fonte de luz, apenas um botãozinho amarelado. Amanhã, a moça está solta. Janela aberta, olho um céu de estrelas, começo cochilar. Um zumbido vem rápido cantar em meu ouvido. Ponho atenção e mão em concha, espero. Cantou outra vez. Certeiro tapa e lá se foi mais um pernilongo, esparramado em minha mão. Sorri com aquela morte. Nunca vou entender gênese humana, passa horas salvando uma libélula e, de cara limpa, mata seu vizinho ou se destrói em solidão, quem lhe deu tanto poder? Como pode simples criatura ter assim destino de tantos outros seres viventes?
Bom, se foi a Diretoria lá do alto, está na hora Dele convocar sua bancada toda e rever conceitos de humanidade. Quem sabe não está na hora de dar por encerrada sua obra, assinar embaixo e pendurar numa parede celeste. Quem sabe coloca tela nova, branquinha e começa tudo outra vez, mas, desta feita, usando tintas, de cores mais suaves. Dizem que já fez isso uma vez e pediu para que casal de cada ser vivo fosse ajuntado. Mas se for fazer o mesmo e despachar os casaizinhos pela galáxia afora, por favor, Senhor, não leva casal de gente nem macaco, lembra de Darwin, ah, nem de Aedes, pelo Amor de Deus, quero dizer, pelo Seu amor. Amém.

* Veterinário e escritor